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Mostrando postagens com o rótulo Mosaico

Abre o olho – Marília Kubota

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MOSAICO Coluna 14    –  Conto Abre o olho  por Marília Kubota Sonhei que eu caminhava por uma trilha, quando encontrei uma placa em que estava escrito: Abre o olho. Meus olhos estavam bem abertos, mas logo que vi a placa, pisquei. Saiu um bocado de pus. Eu não sabia de onde vinha o pus. Talvez fosse conjuntivite ? Tinha ouvido falar que havia uma epidemia. Fui caminhando pela trilha e encontrei outra placa: Abre o olho. Pisquei e mais uma camada de pus aflorou. Conforme seguia a trilha, fui encontrando placas com os mesmos dizeres. Eu piscava e saía pus. Não percebi imediatamente, o pus saía e a remela se depositava em meus olhos. Na quinta ou sexta placa é que percebi o desconforto de ter um grude . Comecei a esfregar, o grude não saía. Eu não conseguia parar de seguir as placas. Meus pés se moviam sozinhos, e embora eu sentisse grande desconforto, as perseguia. Assim, depois da décima, meus olhos estavam tomados pelo pus. Fecharam-se. Não conseguia abrir. Esfreguei co

O verso do avesso | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 13    –  Crônica O verso do avesso  por Marília Kubota Sempre que chegava a data da comemoração da imigração dos japoneses ao Brasil, me pediam, quando eu trabalhava como jornalista, indicações para falar com fontes na comunidade de brasileiros asiáticos. As entrevistas seriam de pessoas que pudessem dar depoimento sobre os tímidos, honestos e diligentes japoneses, trajando quimono, comendo feijoada com "palitinhos"  —    que às vezes as mulheres também usavam como grampo para prender os cabelos  —   e contando piadas falando "errrado". Durante anos fui assessora de imprensa do Nikkei Clube de Curitiba e trabalhei para jornais étnicos. Por isto, eu era uma referência no assunto para os colegas jornalistas. Depois do centenário da imigração, acabei me envolvendo mais com literatura e a academia. Deixe para trás este passado. Colegas jornalistas ainda me procuravam como fonte. Alguns, já professores de cursos de jornalismo, me indicavam par

Notícias falsas de uma outra época | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 12    –  Crônica NOTÍCIAS FALSAS DE UMA OUTRA ÉPOCA A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, fez emergir o fenômeno das fake news. No Brasil, as notícias falsas também elegeram um presidente. A propaganda e manipulação de informação desde sempre são instrumentos da política. Neste mês, quando se celebra, no dia 18 de junho, os 112 anos de imigração japonesa ao Brasil, é bom lembrar como, em outra época, as notícias falsas foram responsáveis por um massacre na comunidade de brasileiros asiáticos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, imigrantes japoneses e suas famílias se envolveram num conflito interno por causa da difusão de notícias falsas. Uma parte dos imigrantes e seus filhos acreditavam que o Japão havia vencido a guerra. Outra parte, sabia que havia sido derrotado. A desinformação sobre a derrota foi facilitada por causa do isolamento da comunidade. Quando o governo japonês atacou Pearl Harbor, no Havaí, o governo americano o decretou ini

Pensar linguagens | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 11    –  Crônica Pensar linguagens por Marília Kubota Pensar sobre leituras. Ler, reler, pensar sobre o lido. Pensar sobre escritos que descolam do imediato. A tentação de escrever sobre o imediato é grande. Há um grande público ávido por consumir o que se desloca diariamente. Este público se alimenta de sensações.  As sensações apelam à percepção emotiva. Os sentimentos aguçados pelo escrito sensacional são os afetos negativos: medo, raiva, aversão, que pedem reação e extroversão. A leitura, reflexiva, é um estímulo à introversão. Difícil é o momento de parar, recusar o imediato. O imediato não é agora. Agora é estar presente.  Agora é reverência: à leitura (pausa para a imersão e desconexão com os ruídos de comunicação /ondas de entretenimento), contemplação do sagrado que é a existênc comunhão com tudo que está fora e dentro. Agora é a sucessão de ontens: o presente não existe, tudo é passado. O imediato apela ao eu. O agora vê o outro. O eu nã

O estreito que se alarga | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 10    –  Resenha O estreito que se alarga  por Marília Kubota Mulheres. Estas são as protagonistas dos 19 contos de "Passagem estreita" (Carlini Caniato Editorial, 2019), de Divanize Carbonieri. A autora acompanha a trajetória de deficientes mentais, mães solteiras, ex-escravizadas, guerrilheiras, interioranas, escritoras, professoras e sem-vozes que buscam brechas para entrar num sistema desigual.  As narrativas se assemelham a uma algaravia, escritas num bloco só — um fôlego só ? — explorando a complexidade de recursos literários da modernidade. Alternância de vozes e foco narrativo, representação de vários dialetos (da fala de  analfabetas até a de super-letradas) e  paródia de linguagens  do discurso literário e de roteiros de cinema.  Para permitir que o leitor entre no universo das personagens, a narração adota o ponto de vista delas, mesmo que entre em conflito, como acontece em "Fia". Quando a protagonista é incapaz de interpr

Eu também sou brasileira | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 09    –  Crônica Eu também sou brasileira por Marília Kubota Drummond tem um célebre poema em que diz: “eu também já fui brasileiro, moreno como vocês.” O poema foi escrito nos anos 1930. Ainda vigorava o estereótipo do brasileiro como nativo carioca ou baiano,  queimado de sol. Desde fins do século XIX, o governo incentivava a imigração europeia, com o propósito de “branquear a raça”. Além de indios, portugueses, espanhois, negros e judeus que já integravam o caldeirão cultural étnico, entraram no país os brasileiros diferentes - a maioria italianos, mas também alemães, eslavos e asiáticos. Já na segunda geração, italianos não eram diferenciados pela etnia, o que não aconteceu com alemães e asiáticos. Depois de mais de 110 anos de imigração, filhos e netos de japoneses ainda são identificados como japoneses, ou estrangeiros. Tentam nos definir através de estereótipos: somos quitandeiros ou pasteleiros, inteligentes, bons em matemática, disciplinados

A vocalização é um teto | Marilia Kubota

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MOSAICO 08 Resenha Por Marilia Kubota "Morada" (Feminas, 2019), de Catita, nome artístico de Cátia Luciana Pereira, evoca,em epígrafe, os castelos imaginários de Carolina Maria de Jesus na abertura de seu livro: "É preciso criar esse ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela." A autora ergue a construção poética com paredes, janelas, portas e teto, como uma casa. Nesta casa habitam palavras, sonhos, e também monstros. Um dos monstros deste pequeno livro é uma das chagas sociais que tem persistido no Brasil, desde o sucesso de"Quarto de despejo".  Uma mulher negra pode ser escritora ou poeta ? As vozes potentes de Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Elisa Lucinda, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral e tantas outras afirmam que as mulheres negras têm um lugar na literatura brasileira. Não é mais preciso esconder uma Maria Firmina dos Reis como a primeira romancista brasileira ou embranquecer a poesia atrevida de Gil

Como me tornei uma mulher | Marilia Kubota

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Mosaico - Crônicas - 09 Como me tornei uma mulher Por Marilia Kubota A primeira vez em que ouvi a palavra sororidade foi em 2006 , num evento literário que organizei em Curitiba. Foi o contato inaugural com o feminismo. Até então, não relacionava os vários traumas envolvendo feminilidade e sexualidade sofridos desde a infância com o fato de ter nascido mulher. Mulher que gosta de pensar: o tipo mais odiado pela sociedade conservadora. Desde esta época aprendi muito, particularmente nos últimos três anos, quando aderi ao movimento Mulherio das Letras.  A interlocução com escritoras independentes, veteranas ou iniciantes, me fez entender o que é sororidade. Mulheres pensadoras e artistas são, por si, um fenômeno. Temos que vencer muitas batalhas para provar que "escrevemos tão bem quanto um homem." A primeira batalha é poder nos enxergar como irmãs, não inimigas. Não foram poucas as vezes em que fui ofendida por organizar eventos com mulheres. Ofensas de todos

Possibilidades de uma poeta impossível | Marilia Kubota

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Mosaico - Resenha - 06 Possibilidades de uma poeta impossível Por Marilia Kubota "Possibilidades" (2006), o último livro escrito pela poeta gaúcha Angela Melim, trabalha com o possível da linguagem diante do impossível da vida. Sua poesia são "pinceladas faiscantes de objetos nervosos", como define Leonardo Fróes no prefácio. Cacos, retalhos, grafismos, ranhuras, incisões: elementos que remetem à fragmentação do discurso racional. A lógica desta poesia é o fragmento, o rompante emotivo, a imagem lacerada. São possibilidades de comunicação num universo em que a ordem é o caos . A poesia lida com as possibilidades da linguagem. Há mais invenção na restrição de recursos do que no desregramento. Isto porque a linguagem é, antes de tudo, um sistema, que para ser  compreendido por todos os falantes e escritores, cria regências. Na história da poesia, regras foram criadas para levar a efeito o que se considerava boa    —  ou bela    —   poesia. As vanguardas p

Uma janela para o sobressalto

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MOSAICO Coluna 05    –  Crônica Uma janela para o sobressalto por Marília Kubota Na pandemia, pipocam conselhos sobre como preservar a sanidade mental durante a quarentena. Há entrevistas com padres, monges e religiosos acostumados a viver em clausura em monastérios. Ex-presos políticos descrevem a rotina nas celas em seu tempo da reclusão. Escritores e intelectuais defendem a necessidade da solidão como fonte de inspiração. Receitas para suportar o isolamento não variam. Silêncio. Meditação. Reflexão. Disciplina. Exercícios físicos. Leitura. Filmes.  . Há um mês, desde que a rua se tornou ameaça viral, passo tantas horas sozinha quanto antes da quarentena. A diferença é que não saio mais para ir a restaurantes, cafés, salas de cinema, teatro encontrar amigos, nem vou eventos literários. Cozinho em casa, vejo filmes por streaming - uma grande dica é o site do Petra Belas Artes, só exibe filmão, todos gratuitos - faço yoga e estudo por cursos online.

As fissuras do mal | Marilia Kubota

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MOSAICO Coluna 04    –  Resenha As fissuras do mal  por Marília Kubota O dicionário registra dois significados para a palavra fissura. Uma formal, que significa  pequena abertura longitudinal, fenda, rachadura ou sulco, e outra informal:  apego extremo, forte inclinação, loucura, paixão. Os personagens dos contos de livro "Fissuras", de Henriette Effenberger (Penalux, 2018) trazem estas rachaduras. São párias, indivíduos que habitam as margens da sociedade: trabalhadores de classe social  inferior, mulheres que sofrem violência doméstica, jovens delinquentes, idosos, religiosos. O eixo comum a todos eles é  o sentimento de solidão.   Henriette narra com destreza, revelando domínio da linguagem. Com enredos despretensiosos,  envolve a leitora ou o leitor em uma tessitura viva, de modo a surpreender no final. O fecho dos contos acaba sendo o ponto forte das histórias. As rachaduras sociais irrompem nas frestas, revelando um conflito entre o Bem e o Mal. Neste emb