Para não dizer que não falei dos cravos | Quatro poemas de Renato Suttana


Coluna 22

Quatro poemas de Renato Suttana


JOGO

 

Espetáculo vazio:

minha mão sustinha a rosa,

e a tua buscava o fio.

 

Espetáculo circense:

na corda eu me equilibrava,

e ignoravas o suspense.

 

Eu fazia uma pirueta

no centro do picadeiro;

e ias ao mundo, discreta.

 

Espetáculo deserto:

eu dizia uma palavra,

mas teu ouvido era incerto.

 

(Eu formava um pensamento

de asa e cor na tarde morna;

e tu fugias no vento.)

 

Espetáculo vazio:

meu sentir batia à porta,

e o teu ignorava o frio.

 

 

ABRO A MINHA PORTA

 

Abro a minha porta.

Abro-a para ti,

para que tu possas entrar.

 

Abro a minha porta

para que entres na casa

e para que possas morar nela comigo —

 

na minha casa situada

próximo ao círculo dos gelos,

quase alcançando o Polo Norte,

 

entre os esquimós:

a minha casa

com as portas abertas e as janelas.

 

Abro a minha porta

para que possas amanhecer dentro dela,

como a melhor palavra dentro da voz,

 

como o melhor sol

dentro da mais clara manhã,

ajudando-a a amanhecer quando chega o inverno.

 

Próximo ao círculo dos gelos

junto ao Ártico,

onde o inverno começa

 

e os silêncios se alargam

sobre planícies de branco

até o horizonte.

 

Abro a minha porta para ti,

no extremo do mundo, no extremo

de todas as situações,

 

antes do inverno —

com o convite para que tu entres na casa

e faças dela a tua morada.

 

Imagem de Hans Braxmeier por Pixabay. 


PÁVIDO E ATENTO

 

Caminhos do meu desejo

(fogo no dorso das horas) —

percorro-os, cego, a despeito

da chuva que à tarde se arma,

da nuvem que ao longe avisto,

do granizo que já vem

assolando a plantação.

 

Caminhos do meu desejo.

(Vou sozinho para a noite.)

Percorro-os até o final,

sem respeito à tempestade,

e entanto cheio de medo,

e entanto pávido e atento

aos avisos do trovão.

 

 

NÃO OUSAREMOS

 

Tu e eu.

Tu e eu na noite ruidosa.

Tu e eu na noite de agora

tentando atravessar a borrasca,

enquanto o vento nos arrasta para o outro lado

e a chuva nos empurra para o centro vazio

de uma solidão sem origem e sem paisagem,

onde os nossos desejos não podem germinar

e onde as apreensões se convertem em arestas

e os pensamentos em labirintos,

com as suas passagens e os seus corredores

que — órfãos — não ousaremos percorrer.

 

Imagem de seagul por Pixabay. 


 

RENATO SUTTANA nasceu em 1966 na cidade de Bar­bacena e se criou em Barroso (Brasil). Foi professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava-PR, e trabalha atualmente como professor adjunto na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, em Dourados-MS, onde reside. Como escritor, publicou livros de poe­sia e ensaios, entre os quais Bichos (2005), Outros bichos (2011), Bichos ima­ginários (2013), Rapinário (2015), Quando me abriram portas (2016), Indigestos e purgativos (2016), Lição de economia (2018), Opinionautas (2012, 2019) e Música de pianola (2018), Fora de alcance (2019) e O esquecimento necessário (2020). Tem traduções de Leopardi, Petrarca, H. P. Lovecraft e outros autores publicadas em livros e em seu site na internet. Seu livro Dura lição (inédito) recebeu em 2020 o Prêmio Leia MS, da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, com patrocínio da Lei Aldir Blanc. Poemas seus foram incluídos em coletâneas e revistas literárias do Brasil e de Portugal.



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