Postagens

Mostrando postagens com o rótulo Ilustração

Uma colher de chá pra ele - Marcio Sales Saraiva

Imagem
| uma colher de chá pra ele - 06 | FACE TO FACE por Marcio Sales Ele era muito bonito, inteligente e romântico, mas com uma dose certa de angústia e inquietação com a vida. A idade se adequava ao gosto dela, uns vinte e poucos. Suas fotos revelavam sorriso e personalidade encantadores. Já fazia dois meses que se conheciam pela Facebook. Ela colocou-o como favorito e o acompanhava todos os dias. Em geral, era a primeira a curtir e fazer algum comentário carinhoso e elogioso sobre aquilo que ele postava: poemas de Hilda Hilst e Drummond, frases de Platão, Aristóteles, Kant, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Hannah Arendt, Bauman. Pequenos vídeos de Clóvis de Barros Filho, Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal. Músicas de Chico Science do YouTube. Alguns quadradinhos com frases emolduradas sobre filosofia budista e taoísta. Além de matérias da mídia, sem comentários pessoais, de sites conhecidos como progressistas. Temos muitas afinidades , suspirava Mirela diante

Um conto sensível e interessante de Giovana Proença

Imagem
Imagem Pinterest                                                              Trapézios por Giovana Proença Desviou de um motorista desatento ao atravessar a rua. O coração mal palpitou a adrenalina do quase atropelamento, ocupado com a inquietação maior. Não havia espaços para o ‘quase’ quando saiu do encontro, o pacote na bolsa carregava o peso de todas as esperas. No anseio de prolongar a sua própria, vagou sem rumo pelas ruas da cidade. Levava o olhar baixo, registrando os padrões das calçadas. Poucos transeuntes tomavam as vias, se perguntou se todos levavam uma corrente tão pesada como a que estava prestes a se libertar. Caminhou pela avenida larga, sentindo vez ou outra o fustigar de uma folha solta, que seca, desprende-se em derradeiro resvalo ao definhar, caída das árvores que ladeiam o pavimento. Sente-se atraída por um terreno baldio, marcado pela placa ‘Não jogue lixo’. Afaga o muro em tentativa de fundir-se ao concreto, registrando a textura áspera e

Uma crônica em tempos de quarentena - Por Marta Godoi

Imagem
Imagem Pinterest   Portugal/Margem Sul do Tejo/Setúbal  Na casa de casais 23 por Marta Godoi As flores coloridas na Praça do Bocage dão o tom primaveril aos dias. No Montalvão, agapantos altivos, brancos e lilases imperam. Só perdem para as escandalosas bougainvilles boninas. O barulho contínuo no prédio vizinho, as obras no entorno do Convento de Jesus dão o recado de retomada mas os números de infecção pelo coronavírus também dão: estamos aí. No casarão rosa em frente, dois homens refazem o reboco do muro. O ajudante é tão franzino que quando  enche a pá com os entulhos pra jogar no caminhão tenho a sensação que ele vai junto. Um fiapo. Que muro! Contornos e mais contornos. De um tempo em que se tinha mais tempo. O tempo está tão bom que lavamos as mantas usadas no finalzinho do inverno e no abril de chuvas mil. Terminei de ler o segundo romance aqui. Li o A noite passada, como uma lesma. Processar os acontecimentos sobre a Revolução dos Cravos que foi sonegada nas au

Vozes Negras importam - e brilham

Imagem
Tiago Moura Januário Poetas Contemporâneas Panfleto para Pirilampos e Magnólias Há um aneurisma no cérebro do País Esperando o tempo da explosão. Pirilampos apagados Buscam faróis na noite da Baía, No mistério do dique, das docas. Celebro manifestos insurrectos Onde a Poesia cataclisma, Hekatomba. Estampo relâmpagos nos muros. Uma hemorragia inunda De sangue o oxigênio das horas. O sangue pletora utopias, risos e chamas. Apesar da grande noite que se abate sobre o País, O combate permanece no silêncio das tumbas, Na obscuridade dos pesadelos, Nas vontades recolhidas por Blimunda. O horror retumba sobre as casas. Enquanto engenho palavras E lavro novos âmagos. Na Colômbia, Há Ceibas na estrada para Córdoba, E suas raízes guardam segredos De viajantes, de plantadoras de café, De homens que bebem a noite E sorvem nossas magnólias (Magnólias brancas de Billie). Mulheres que mascam tristezas, fumos. Ceibas mulheres que sustentam o céu, E acolhem a

O corte profundo de Lindevania Martins / Um conto

Imagem
Fotografia por Marcel Caram Voo noturno por Lindevania Martins Heraldo deu uma última baforada e jogou a bituca de cigarro em cima dos restos de comida espalhados pelo chão. Observou suas mãos ossudas e vazias, os dedos com pontos de sujeira sob as unhas. Uniu as mãos e estalou as juntas. Agora, já podia trabalhar. Levantou o braço inerte do filho, que repousava sobre seu ventre de menino, e o colocou de lado. O caminho estava livre. Pegou uma gilete meio enferrujada e a enfiou na pele da barriga magra de Tonho, na qual podiam se contar os ossos. Cuspiu sobre o amontoado de garrafas de cerveja, sobre os cacos de vidro no chão imundo, antes de murmurar: — Ele tem que sentir na pele como dói ser destruído. Antes que a destruição de fato ocorra. Estava quente e algumas moscam zuniam em volta deles. Rita, a mãe do menino de sete anos, se afastou do fogareiro onde o companheiro aquecera o crack e tomou mais um pouco da cerveja morna, bebendo do gargalo: — Você não tá

Uma prosa poética - por Sandra Modesto

Imagem
Arthur Braginsky PRECISEI FALAR COM DEUS por Sandra Modesto A sala gelada Luna numa maca usando uma vestimenta estranha. Uma equipe preparando – a. Ela assistindo ao vivo. Algumas agulhadas do lado esquerdo do peito. Tudo tranquilo até que a voz do homem de branco conta que não deu certo. _ Temos três minutos para tentar novamente. A mente de Luna vira do avesso. Ouviu uma ordem: _ Pode preparar rápido. Naquele momento Luna olhou pra o teto.   Até então nunca tinha ficado em silêncio com Deus.   Era uma tarde de agosto em um hospital a cento e cinquenta de distância.   Naquele mês interminável. “É o seguinte, cara, se você achar que não tem mais jeito, meu coração está fraco e chegou minha hora, cuida bem dos meus filhos, abrace- os todas as manhãs”. Não os desampare, nunca. Não deixa ninguém se apoderar dos meus livros. Não sei se você se lembra de quando eu tinha quatro anos e minha avó me levava aos cultos evangélicos. Eu não entendia bulhufas. Depo

Um conto forte e tocante - por Mara Magaña

Imagem
Imagem Pinterest Sonhos de Porcelana por Mara Magaña               Isadora concebia filhos de um marido monótono. As crianças cresciam pela casa, entrechocavam-se nos corredores, choravam por nada. Isadora desdobrava-se para conservar os miúdos limpos, mas sem paixão pela faina. À tarde servia o jantar para o marido, lavava a louça, tomava uma xícara de café antes de dormir e deitava-se sem nenhum enlevo. Mesmo assim, sonhava com porcelanas chinesas, seu grande desafio. Do dinheiro do leite dos pequenos, sempre dava para tirar algum para a caixinha, que ficava atrás do bule na cristaleira. Um dia iria pé ante pé até a loja de Dona Izildinha e compraria o jogo de chá. Podia ser simples, sem as colherinhas de prata, que também a encantavam, mas nem tanto. Um dia.               De manhã acordava com o primeiro que lhe pedia uma mamadeira aos berros. Removia fraldas, fervia o leite, varria o chão e aí é que chamava o marido. Punha a mesa para ele, esquentava o pão, pa