Minha Lavra do teu Livro 16 | "DO MENINO", de DALVA MARIA SOARES, por Nic Cardeal


Minha Lavra do teu Livro 16

- resenhas afetivas -



 "DO MENINO": 

UM LIVRO-ÚTERO 

NO AMOR DE MÃE


"Para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós"
(Clarice Lispector, "A descoberta do mundo").


DO MENINO, de DALVA MARIA SOARES (Belo Horizonte/MG: Venas Abiertas, 2021) é um livro de crônicas do cotidiano da relação mãe-filho, das "aventuras e desventuras de ser mãe solo". Dalva já nos revelou sua intensa (e poética) narrativa, em seu primeiro livro, "Para diminuir a febre de sentir", lançado pela mesma editora, em 2020! "Do menino" segue esse jeito corajoso e tão bonito de dizer sobre a vida, sobre o inesgotável amor de mãe, sobre as dores e cansaços de mãe, sobre as alegrias de mãe.

Para falar "Do menino", Dalva volta a 6 de janeiro de 2001, 'Dia de Reis', quando, depois de ir ao povoado de Santo Antônio do Baú (distrito de Jequitibá, Minas Gerais) e assistir à 'Folia de Reis', decidiu que, assim como José e Maria, ela também teria 'seu menino'.

João Pedro veio ao mundo em 21 de abril de 2002, "depois de eu ter conseguido, com muita terapia, desconstruir o discurso de uma vida inteira de que não queria ser mãe" (p. 22), conforme nos conta Dalva. Enquanto a autora vai narrando suas crônicas sobre sua relação com o filho, percebemos seu fascínio pela maternidade, mesmo com as dificuldades em educá-lo diante de um mundo constantemente hostil, violento, preconceituoso e racista: "Ser mãe não é fácil. Somos culpabilizadas até pelo machismo, porque, segundo alguns, são as mães que educam os homens. Parece que os filhos não têm pais, amigos; parece que não estão no mundo, recebendo influência de todos os lados. Fico irritadíssima com esse discurso, porque é uma peleja diária levar o menino a refletir sobre questões importantes, aprendidas em outros espaços onde ele circula e trazidas para dentro de casa" (p. 37).

O livro é um 'manifesto' sobre a necessidade de resistência ao racismo cotidiano, perverso, sem escrúpulos, como anotou Dalva sobre as percepções do menino: "Falou também de um  certo cansaço em ser enxergado como exótico numa cidadezinha de sete mil habitantes, por conta do cabelo e do skate; e de ser enxergado como "da roça" pelos amigos da metrópole, que insistem em ensiná-lo a usar a manete do playstation, como se ele não soubesse. Falou das falas e das posturas racistas cotidianas que vivencia na escola; das conversas que tem tido com as amigas negras e de como tem insistido com elas sobre a necessidade de se posicionarem e não aceitarem racismo e preconceito travestido de brincadeiras. Falou que quem decide se é ofensa ou não é quem se sentiu ofendido. Eu ainda me surpreendo, todo dia, com a postura madura desse menino, que cresce sem parar, e não só fisicamente. Uma ternura imensa tomou conta de mim, e quando o sono chegou, pedi a ele que ficasse deitado, ali, do meu lado, até eu dormir." (p. 42).

Sim, este é um livro sobre a cor da pele, a cor do cabelo e, principalmente sobre a dor da alma, diante do absurdo e tão real racismo estrutural: "Mas não é fácil,  porque não é só cabelo. É identidade,  é resistência,  é ato político. (...) Somos sujeitos corpóreos e usamos o nosso corpo como linguagem, como forma de comunicação. Para os negros, o cabelo crespo é um forte ícone de identidade. A questão do cabelo não é nunca só sobre o cabelo. Diz respeito a se inteirar sobre você mesmo, sobre quem você é e como você realmente é" (pp. 49-50). É um livro sobre tudo aquilo do qual tanto já foi dito, mas que urge ser repetido, martelado, insistido, até que caibamos TODOS no mesmo mundo: TODOS, sem mais NENHUM resquício de racismo! Porque 'o menino' "é a sexta geração desde a velha Filomena, minha tataravó, negra escravizada, que foi até onde consegui chegar na minha genealogia. Seis gerações depois, um adolescente, a ponto de completar 16 anos, sonha com um emprego e não pode só se dedicar aos estudos, porque a mãe, mesmo tendo doutorado, ainda não consegue proporcionar a ele um monte de coisas que ele deseja e precisa (...) Seis gerações depois e ainda não conseguimos vencer a pobreza" (pp. 56-57). Afinal, Dalva, socióloga, conhece muito bem o 'solo onde pisa': "Faz pouco, completamos 133 anos de uma abolição que nunca se efetivou. Durante cerca de 400 anos, jardins foram proibidos às nossas ancestrais. Em pleno século XXI continuam sendo proibidos aos nossos filhos" (p. 81).

Por outro lado, é um livro que também nos faz lembrar que nosso cotidiano pode até ser difícil, árido, porém, há "momentos de respiro" onde é possível perceber as epifanias brotando pelos arredores, basta que tenhamos olhos de 'ver'. Sim, há muitas "horinhas de descuido" nesse pequeno grande livro, graças a uma mãe que sabe se equilibrar entre as agruras da realidade e as belezas sutis e, ao mesmo tempo, tão palpáveis, da relação mãe-filho, onde há muito de aprendizado mútuo, verdadeira lemniscata de partilhas literárias, musicais, questionamentos sobre jeitos de encarar as vicissitudes e obstáculos da vida, que enriquece e faz crescer por demais esta relação! 

Uma dica: coloque a música de Roberta Flack com seu piano a tocar ao fundo dessa leitura! Tenho certeza de que você navegará, sem querer descanso, pelos territórios de Dalva e de 'seu menino', pois essas crônicas são construções do cotidiano cheias de garra, força de vontade, "medos bobos e coragens absurdas" (como já escreveu Clarice Lispector), entre dores, alegrias e reflexões, nesse 'livro-útero' no amor de mãe!

Mais uma vez te agradeço, Dalva, por dizer tanto em um pequeno livro tão imenso, onde tuas palavras, em apenas 85 páginas, estendem o território das nossas percepções e sentimentos para os horizontes tão vastos do coração! Obrigada, por dizer o que precisamos nunca esquecer: todas as histórias de resistência do nosso povo periférico importam, e essas histórias precisam ser deslocadas para o 'centro cardíaco' urgentemente: que as políticas públicas possam efetivamente, e sem mais utopias, abarcar as maiorias minorizadas, com o objetivo de lhes garantir pleno acesso a melhores condições de vida, saúde, educação de qualidade, trabalho bem remunerado, dignidade e, principalmente, igualdade racial!

(Nic Cardeal)

capa do livro Do menino


Uma crônica extraída do livro Do menino:

"EPIFANIA

Hoje fui com o menino tirar carteira de trabalho. Ele está decidido: quer mesmo trabalhar. Depois fomos comer alguma coisa, e de lá ele seguiu para a escola. Eu preferi comer em casa. Antes, ele me levou ao ponto de ônibus. Ficamos conversando enquanto a lotação não vinha. Não gosto do centro,  me deprime. Ainda mais em tempo de precarização do trabalho. Quem tira carteira de trabalho aos 16 anos? Só quem precisa conciliar trabalho e escola. 

- Você problematiza demais, mãe. 

- Sou socióloga de formação, filho; não tem como não problematizar.

Não sei por que, a conversa girou para as ipomeias floridas pela manhã. Contei para ele que assim que abri a janela desejei tanto saber fazer um poema! Lembrei que Guimarães Rosa tem vários poemas sobre as cores e fui ler sobre o azul. No poema ele fala justamente das ipomeias, que tal qual uma cerâmica fina refletem a tinta do  céu. 

- Mãe, Guimarães Rosa fumava um, só pode! Como é que o cara tem uma tirada dessas?

- Espere até ler Grande Sertão Veredas, filho. O livro fala de um tempo e lugar onde o Estado não chega, onde as pessoas têm que resolver seus conflitos, estabelecer suas leis, seus julgamentos, decidir quem vive e quem morre. É um livro de guerras, mas, entre uma batalha e outra, o velho Rosa nos oferece momentos de ternura. Como quando, depois de uma guerra interminável, super sangrenta, num momento de descanso, o jagunço Riobaldo oferece ao amigo Diadorim uma pedra de safira enrolada em algodão e trazida, há tempos, costurada no forro de sua mochila. Pensa num gesto desse! Um jagunço presenteando outro jagunço,  por quem alimentava um amor secreto!

Estávamos em plena Avenida Afonso Pena e eu só percebi o entusiasmo com o qual falava quando o menino, carinhosamente, segurou as minhas mãos e depois o meu rosto. 

- Não, mãe, eu não quero cortar a sua vibe, é que achei bonitinho demais. Porque você problematiza o tempo todo e entre uma problematização e outra tem esses momentos de respiro.

- A literatura me salva, filho.

- Sei como é,  mãe. No meu caso é a música. 

- Sim, João, eu me sinto como um daqueles maltrapilhos do conto da Adélia que, morando em caixotes à beira da estrada, num dia qualquer se espanta com a boniteza de um céu estrelado e só por isso sente que vale a pena ter nascido. Ou como o narrador do poema Bendito que, um dia, na roça, abre a janela, vê a horta branca de luar e diz, emocionado: "Louvado sejas, meu Deus!" Eu sei que o mundo está horrível, mas essas epifanias me salvam. 

Nesse momento, alheia a quem passava, eu chorei, e o menino me abraçou forte - um abraço de cumplicidade. 

- Seu ônibus chegou, mãe!"

[pp. 64-66]

-*-

fotografia do arquivo pessoal da autora 


DALVA MARIA SOARES é natural de Baldim/MG. Graduada em Ciências Sociais (UFMG, 1995) e doutora em Antropologia Social (UFSC, 2016). Mãe do João Pedro, professora e escritora.

Participação em coletânas/antologias: Raízes - escritoras negras: resistência histórica (Venas Abiertas, 2018); Raízes - escritoras negras: resgate ancestral (Venas Abiertas, 2019); Ócios no Ofício: antologia poética (Venas Abiertas, 2020); e Carolinas: a nova geração de escritoras negras (Bazar do Tempo/Flup, 2021). 

Livros publicados: Para diminuir a febre de sentir (Venas Abiertas, 2020); Do Menino (Venas Abiertas, 2021); e Me ajuda a olhar (Venas Abiertas, 2023).






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