Nada mais vai ao caixão | Marilia Kubota

 

MOSAICO Coluna 27    Crônica

Nada mais vai ao caixão
por Marília Kubota

Começa o ano novo, ou não começa nada. É um ciclo contínuo, em que o sol dá mais uma volta sobre a Terra. O que significa o Ano Novo ? Abertura, renovar de esperanças. Renovar significa tornar novo de novo. Como renovar o que continua ?
Continuo a viver com os hábitos que se tornaram rituais ou tradição. É tradição pular sete ondas quando se escolhe fechar e abrir o ano diante do mar. Tradição cultural vinda de cultos africanos. Como seguir a tradição e perseguir homens negros nos supermercados considerados suspeitos ? Como seguir a tradição e considerar que Shakespeare faz parte do cânone literário universal não Murasaki Shikibu, a primeira romancista do mundo ?
O ano só será novo quando tivermos coragem de enfrentar desconfortos mentais. Não só as barbaridades naturalizadas nos jornais todos os dias. Também as micro-agressões cotidianas. Como o fato de achar lindo um homem branco de olhos azuis, mesmo que ele tenha sido acusado de estupro.
Viajar ao exterior sem necessidade ou tirar férias numa pandemia porque tem poder ou dinheiro quando os semelhantes estão adoecendo, morrendo ou sofrendo por luto. Defender a ditadura militar e o uso da força nas redes sociais e usar camiseta vermelha por conveniência, em grupos intelectuais.
Desejar namastê, enquanto silencia quando outra mulher é ofendida por racismo. Fingir que um privilégio social é direito individual e usá-lo para projetar seu nome. Fingir que defende mulheres, mas quando confrontada, defender homens que têm poder para usufruir dele. Ofender mulheres que optam por ficar sozinhas ou ter relações com outras mulheres usando piadas misóginas.
Considerar-se feminista mas nunca ler Silvia Federici, Conceição Evaristo, Maria Valéria Rezende, Maria José Silveira, Eliane Potiguara, Cristiane Sobral, Akiko Yosano, Julie Otsuka, Chimamanda Adichie ou Audre Lorde. Usar a máscara identitária para assediar e despertar piedade e não para agregar e convencer.
E o que temos visto de mais desprezível, nos últimos dois anos: organizar a máquina do ódio e da alienação, usando as carências dos mais vulneráveis.
Uma das canções mais admiráveis interpretadas por Paulinho da Viola é seu hino, "Meu mundo é hoje", composição de Wilson e José Batista. Diz o final da letra: "Tenho pena daqueles / Que se agacham até o chão / Enganando a si mesmo / Por dinheiro ou posição / Nunca tomei parte / Desse enorme batalhão / Pois sei que além de flores / Nada mais vai no caixão".
Temos quase 200 mil irmãos mortos, sendo parte das mortes evitáveis, se houvesse sido tomadas atitudes firmes no início o durante a pandemia. Só posso desejar, como votos de ano novo, aos que se agacham diante do público e jamais se levantam, que possam, antes de serem estripados em praça pública, olhar para o seu coveiro. E reconhecer que ele teve um trabalho mais digno que o triste cargo de capitão da República do Ódio.

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