PONTE-AR: literatura preta em dia(logo) | Demandas - Catita

 

Coluna 4

Demandas


            Tina, acordei hoje, seu 13 de maio, com um ponto na cabeça:

“Ogum, vencedor de demanda,

ele vem de Aruanda

pra salvar filhos de Umbanda

Ogum, Ogum Iara,

Ogum, Ogum Iara,

salve os campos de batalha,

salve a sereia do mar,

Ogum, Ogum Iara”

  O ponto na cabeça, sua voz nos meus ouvidos, sua imagem nos meus olhos internos: a senhora cantava esse ponto, essa parte, muitas vezes quando estava na cozinha ou no quintal. Às vezes eu cantava junto, outras ficava só observando.  Muito mais tarde fui entender que o canto ocorria sempre que um problema nos rondava e você estava matutando como resolvê-lo.  

Em nenhuma fase de minha vida, por mais difícil que fosse – perdi a conta de quantas foram e são – nunca imaginei uma situação como a que vivemos atualmente. “Pandemia” para mim e boa parte do mundo era palavra de dicionário apenas. Eu me pego pensando em como a senhora agiria, Tina?

Certamente ficaria apreensiva com as restrições ao entra e sai das crianças, mães e todos que você benzia em casa. Acho que você não os impediria, mas orientaria, tanto quanto os médicos. Imagino você no portãozinho ainda de madeira lá de casa, com máscara, suas folhagens na mão, a arruda na orelha, benzendo a criança no colo da mãe, essa também de máscara, senão você não benzeria! Com algumas pessoas aquele galhinho ficava seco esturricado em segundos. Mal percebiam sua manobra para renovar a proteção! Quanta arruda precisa hoje para uns e outros, um bem mais que todos, o tal “enviado de Deus” (não nosso Deus, não!), portador da energia mais destrutiva, Tina?

Certamente a senhora deixaria uma espada de São Jorge na soleira da porta, pronta para ser lançada nas pernas de quem ousasse sair de casa sem necessidade ou demorasse a chegar de volta. Eu rio com a cena, pois hoje somos todos adultos. Será que mesmo assim você usaria o golpe da espada? Será que você moraria com seu sobrinho-filho? Ou algum de seus sobrinhos-netos? Estaria ainda na casa que sua própria mão ajudou a erguer? No meu coração, seus 96 anos não impediriam a agilidade das pernas e braços, nem a bronca por estarmos “fora da lei”. Quanta espada de São Jorge precisa hoje para os fora da lei dentro dos paletós e colarinhos engomados, Tina?   

Certamente estaria ajoelhada mais que nunca no seu gongá, velas de todas as cores, flores, folhas, aromas, comidas. Muita limpeza nas suas guias, muita reza dia e noite para todos que estão sofrendo, alguns como sempre, outros como nunca se viu, enfermos da doença, da pobreza, do descaso, do desgoverno. Quanta reza, quantos guias, quantos orixás precisa hoje para acabar com essa pandemia? A senhora chamaria por Ogum mais uma vez, diria que só o Tempo teria a resposta – e do Tempo devemos ser amigos – e sorriria meio sem jeito meio feliz quando fôssemos cortar seu bolo de aniversário. 


Voz


Não sei se a chuva, o cansaço ou o frio

Não há data comemorativa ou pesarosa

Não sei se a reflexão do cotidiano, a perplexidade com a política, a instabilidade da vida

Não sei se o curso que queria fazer, se a crônica que estava sendo gerada na cabeça, se as provas já em fila a corrigir, se a notícia da exposição comemorativa e gratuita do Museu Afro-Brasil, se a capulana nova - na combinação marrom e amarelo que ela amava – que vai virar uma saia quando eu tiver tempo pra costurar


Só sei que hoje eu ouvi a voz da Tina.


Não essa voz que a gente constrói no imaginário

Para fixar na memória aquele ente querido

Não aquela voz que a gente cria ao ver as fotos antigas

Não as palavras dela que ressoam em mim e espalho por aí para mantê-la como viva

Não o ensinamento dela que reconheço em mim ao estar com o Cauã ou a Rayane, a continuação da nossa família pelos ventres fraternos

 


Foi a voz da Tina que ouvi hoje.

Nítida.

Por nanomilésimos de segundos.

No meu ouvido.

Dentro da minha cabeça.

 

Eu queria saber a razão.

Para conseguir fazer isso de novo.

Será que fui eu que fiz?

Queria esse poder.

Precisava.

 

Seria o mantra (ponto?) do feminismo negro?

“Não estou sozinha”.

“Trago comigo todas as minhas ancestrais.”

A Tina foi a preta velha, a sábia matriarca marcada em mim.

 

O que falou pra mim?

Sua voz durou tão pouco hoje, que não consegui gravar as palavras, Tina.

Sabe quando eu acordava e não conseguia contar o sonho, ele me escapava, mas a sensação dele ficava?

Lembra, Tina? Assim foi sua voz agora. Depois de tantos anos...

E foi tão inesperado

Não consegui segurar na minha cabeça

Não consegui ouvir de novo.

 

Não consegui.

 

Eu sempre falo com você, desculpe, com a senhora, mas é um monólogo.

No máximo um diálogo imaginado.

Mas hoje foi sua voz mesmo, sabe, Tina?

 

Nítida.

Do meu lado.

Com seu sorriso.

 

Sua voz, Tina.


E meu choro escondido

Porque estou trabalhando, Tina.


(Morada, 2019, Editora Feminas)


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