A beleza no humanismo e na denúncia da poesia de Edir Pina de Barros

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 Barbárie*
 
“Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, e indo embora para o rio e o mar”  - Kanátyo Pataxó
 
 
Filho dos pingos de chuva
caídos de grande nuvem 
não mais participa
da Festa das Águas,
a reverenciar Niamisu,
a agradecer a Txopai
fartura de alimentos.
 
 
Nem dança e canta
Awê, em Patxôhã,
a beber vinho de Jurema,
cheirando à resina de amesca,
para invocar espíritos da mata,
guerreiros e encantados
que vivem em Itôrã.
 
 
Líder da luta pela terra,
filho das águas de chuva
caídas de grande nuvem,
morreu pelo fogo
ateado por jovens de elite
que pensaram ser um mendigo
e só queriam “brincar”.
 
 

*Homenagem à Galdino Jesus dos Santos, líder Pataxó Hã-Hã-Hãe incinerado na madrugada de 20 de abril de 1997, em Brasília.

*****


Imagem: google

Êxodo
 
Oh! Mar! O tempo passa e permanece,
se tudo muda não transforma tanto,
as tuas águas guardam muito pranto
de dor, que não se acaba, ou se arrefece.
 
Do tráfico negreiro não se esquece
o banzo, a morte em vida e o desencanto,
cantados por poetas - e hoje canto
o lado humano que é mais vil, refece.
 
Agora, mar, és palco de esperança,
de quem se atira em ti, os retirantes,
que buscam por futuro bom, hilário.
 
Mas és, também, o túmulo e sudário
dos sem-lugares, tantos imigrantes,

que deixam, para trás, horror, matança.

*****

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Viver

 
Em meio à reclusão, versejo e canto,
porque cantar abranda a distopia,
a privação de tudo o que se cria,
o que nos causa tanta dor, espanto.
 
Eu vejo em toda parte (e vejo tanto),
a tirania, o ódio e a barbaria,
um mundo sem amor, sem poesia,
que em cada verso planto e, aqui, replanto.
 
Porque viver não é calar o grito,
ou se omitir diante da injustiça,
ou aceitar o dito pelo dito.
 
A vida está na força que se iça
para vencer o ódio, que é maldito,

fazer valer o amor que dentro viça.

 *****


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Conquista da América
 
E foi assim que tudo teve início:
o sórdido presente, o gesto, o agrado,
e o espaço, pela cruz, foi consagrado,
em falsa paz, mantendo-se o suplício.
 
A faca, o espelho, a oferta do machado,
em nome da amizade, benefício,
o brinde que, ofertado, trouxe o vício,
o território logo conquistado.
 
Com sangue se lavou toda essa terra
e proclamada foi a “Santa Guerra”,
que logo se espalhou pelos espaços.
 
Oh! América indígena! Que sorte!
O espelho se quebrou de sul a norte,
restando pelo chão seus estilhaços. 

*****

                                                     Imagem de domínio público

Banalidades


Mais um que sangra e morre lá na escola,
menino que sonhava ser doutor,
a bala resvalou no professor,
e a dor da pobre mãe ninguém consola;
 
mais outro é morto e só pedia esmola,
menino negro e pobre sonhador,
só conheceu miséria, fome e dor
e, ao fim de tudo, a bala da pistola;
 
era mulher e mãe que, sem maldades,
ganhava a sua vida lendo mão,
tocaram-na tal qual se enxota um cão.
 
Banalidades, só banalidades,
nas ruas, nas escolas das cidades,
afrontam-se os direitos e a razão. 

*****

                                                           Imagem de domínio público

Distopia

Suspensa nesse vácuo que me enlaça,
sem nada que me apoie ou dê suporte,
prossigo só, sem nada que conforte
o meu viver sem vida, tom e graça.

Ninguém sequer me vê, ninguém me abraça,
(sou vulnerável, ícone da morte),
e passo sem passar, sem que me importe
se vivo por detrás de uma mordaça.

Resisto ao vírus que semeia o drama:
se a vida é uma vidraça eu sou a pedra, 
que rompe o espaço quando não se espera.

A vida é um vir a ser que o tempo trama
em meio ao caos e que se atira, apedra
nas brenhas da incerteza e da quimera.

*****

                                                            Imagem de domínio público

Essa mulher...

Essa mulher, que passa na avenida,
com pouca roupa, olhos bem pintados,
seios desnudos, tenros, empinados,
que muitos chamam de mulher da vida;
 
essa mulher, que dizem ser perdida,
que passa com seus tantos rebolados,
que vende mil carícias, mil agrados,
e tira seu sustento dessa lida;
 
essa mulher que passa, sofre e chora,
levando imensa Caixa de Pandora,
um dia foi menina alegre e pura;
 
essa mulher, que tanto se condena,
quiçá tenha encontrado só hiena,
nos becos dessa vida, que é tão dura.

*****



Edir Pina de Barros se dedica há mais de uma década à poesia. É membro titular da Academia Virtual de Poetas de Língua Portuguesa e da Academia Brasileira de Sonetistas.  Participa do livro 80 Balas, 80 Poemas, organizado por Claudio Daniel (versão virtual, Zunái, 2.020). Seus poemas estão disponíveis em livros, antologias (Brasil e Portugal) e revistas eletrônicas (Ruído Manifesto, Portal Vermelho, Quatetê). Publicou poemas nas coletâneas Poesia em tempos de barbárie e A noite dentro da Ostra, organizadas por Claudio Daniel (Lumme Editor, ambas 2.019). É doutora e pós-doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo, professora universitária aposentada e perita judicial (terras indígenas e quilombolas). Seu livro, Os filhos do sol (EDUSP, 2.003), foi indicado ao Prêmio Jabuti 2.004. Nasceu em Mato Grosso do Sul, tem sua vida enraizada em Mato Grosso e reside, hoje,  em Brasília. Assina, também, como Flor do Cerrado.

edirpina@gmail.com 

site https://edirpina.recantodasletras.com.br/ 

https://www.facebook.com/sonetos.edirpina/





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