Para não dizer que não falei dos cravos | A poesia de Eduardo Mahon numa curadoria de Edson Flávio Santos

 

Coluna 03


A poesia de Eduardo Mahon numa curadoria 

de Edson Flávio Santos



A pedido desta coluna, Edson Flávio Santos selecionou os poemas a seguir a partir de toda a obra poética de Eduardo Mahon.


Nevralgias (2013)




Cuiabá


O sol ilumina três dias

Cozinha as gentes de cá

Suor que me dá agonia

Uma cortesia de Cuiabá

 

O comércio fazia sesta

Havia saraus de piano

Povo que gosta de festa

Seresta e luar cuiabano

 

Rodados os paus de outros barrancos

Migrantes paulistas e do Paraná

Outrora tomados por saltimbancos

Fincaram raízes em Cuiabá

 

Está consumado: segui pra Piedade

Fui enterrado como um paisano

Sou semente nova na velha cidade

Em Cuiabá, morri cuiabano.

 

**


Poema de Cristaleira


Se eu não rir, não presta
Nada vale a poesia sem um sorriso

Se eu não ler em voz alta, descarto
A poesia tempera sabor às palavras

Se eu não reler, não serve
Não há uma grande poesia esquecida


Se eu não arrebatar uma mulher, desisto
A boa poesia vence a resistência

A poesia não é descartável
Guardo-a na cristaleira e apresento-a em festas

Os guardanapos de pano, minha melhor louça e a poesia
Vou polindo-a e os talheres de prata

A poesia não é consumível
A poesia consome


***

 

Palavra de amolar (2015)


Carlini e Caniato Palavra de Amolar - Carlini e Caniato

 

o inverso

é sonhado

por dentro do verso

 

***

 

                 não haverá

                       perícia

no excesso de carícia

 

**


é inevitável

a decomposição

da manhã em meio dia

 

**


não pesam

certezas

em verdades obesas

 

**

 

VAZA                     VISTA

                EM

VIDA                     VASTA

 

**

 

         quando tudo

                se acaba

    depois da borda

           do sem-fim

 nas dobras da dor

     talvez não haja

      nem mais vida

                em mim


***

 

Meia palavra vasta (2015)


Carlini e Caniato Meia Palavra Vasta - Carlini e Caniato


Olho arisco

não vê,

não cria;

nem crê

no cisco.

 

**


na minha mente

o sujeito oculto

é o mais presente

 

**


Lua é ovo:

a noite choca,

racha a casca,

sai piando o sol.

 

**


amar

o

pormenor

é

talvez

o

pior

 

**


Impreciso

Não sabia

O quanto

Nem o quão

Quanta coisa há

Quanta coisa não

Tanta palavra havia

Para cada qual

Como dizia o quê

Quanto falava quão

Qual nominava

Quando calava

O quão mentia

Impreciso

Não sabia nada

Quanta palavra

Que sentido tinha

Qual precisava

O quão impreciso havia

 

**


Palavrazia (2015)


Carlini e Caniato Palavrazia - Carlini e Caniato

 

a morte é um

desfazimento

          quem morre

          jaz momento


**


vivo um hoje longo

que não acaba mais

a estender os braços

tocando com os dedos

o já foi e o vai ser

nesse dia ininterrupto

onde tudo acontece

fora do tempo comum

que ninguém pisque

um só momento

não faça planos

ou junte dinheiro

no relógio desse dia

marco a minha hora

com os ponteiros

do aqui e do agora

 

**

    o que mais

        me irrita

           é ficar

cheio de tudo

       enquanto

           o nada

      me habita

 

**


na sacada

do apartamento

meu quintal é o vento

 

**


o â n g u l o

a n g u l o

n g u l o

g u l o

u l o

l o

o

 

**


Quem quer ser assim sem querer? (2017)


mahon capas 08

 

         seja como for

 qualquer conquista

é um ponto de vista

       do colonizador

 

**


mesmo

vendo

o   ser

não

se 

sendo

 

**


minto

tanto

que

sinto

muito

 

***

 

Um certo cansaço do mundo (2017)




De repente,

esvaziei-me

como a margem

da praia

num hiato

entre as ondas.

 

**

 

amar o que há

o que se apresenta

amar por necessidade

amar por impulso

amar por natureza

amar por náusea

amar por protesto

amar por medo

amar por castigo

            amar o que há

            amar até

            o que não se amaria

            amar poesia

 

**

 

coitado daquele menino

brinca no chão sem chinelo

joga bola nas vidraças de casa

desobedece a mãezinha

para mergulhar numa lagoa funda

 

coitado daquele menino

vai crescer e ver tudo

de cima e de longe

achando desimportantes

todas as coisas de menino

 

coitado daquele menino

preso em camisa apertada

vendo no relógio de pulso

a si mesmo afogado

numa pessoa sem fundo

 

                                    coitado daquele menino...

 

**

 

Quem me compra uma poesia?

Ela vem macia e velha

como um pedaço de couro

rasgando-se de dor.

Quem me compra uma poesia?

Ela está mofada e verde

como um queijo raro

servido com geleia.

Como vendo poesia

se ninguém sabe quanto vale

o meio amargo do chocolate,

o meio seco do espumante,

a meia vida do poeta?




Eduardo Mahon é carioca e mora em Cuiabá-MT. É autor dos seguintes livros: Nevralgias (crônicas, poesia, 2013), Doutor Funéreo e outros contos de morte (contos, 2016), O cambista (romance, 2014), Meia palavra vasta (poesia, 2014), Palavra de amolar (poesia, 2015), Palavrazia (poesia, 2015), O fantástico encontro de Paul Zimmermann (romance, 2016), Contos estranhos (contos, 2017), Quem quer ser assim ser querer? (poesia, 2017), Um certo cansaço do mundo (poesia, 2017), O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (romance, 2018), Alegria (romance, 2018), Azul de fevereiro (contos, 2018), A gente era obrigada a ser feliz (2019), Paraíso em fuga (conto, 2019), Mea Culpa (romance, 2020).


Arquivos Helvio Moraes - Ruído Manifesto


Edson Flávio Santos é cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia. É colaborador da Revista Pixé e faz parte do Núcleo de Pesquisas Wladimir Dias Pino (PPGEL/UNEMAT – Tangará da Serra).



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