Minha Lavra do teu Livro 20 | "PINTE-ME DE AZUL!", de GISELA MARIA BESTER, por Nic Cardeal
Minha Lavra do teu Livro 20
- resenhas afetivas -
"PINTE-ME DE AZUL"
PORQUE "QUEM PINTA
COM PALAVRAS É POETA!"
(Rubem Alves)
Em PINTE-ME DE AZUL! (poesia, Goiânia-GO: Mondru Editora, 2023), seu primeiro livro individual fora do âmbito acadêmico jurídico, GISELA MARIA BESTER comprova que, de fato, possui o dom da palavra, é sua amiga íntima, sua irmã, sua cúmplice! Com ela, Gisela viaja a todos os 'lugares' possíveis e imagináveis da linguagem, arriscando-se, com pleno domínio desta, muito além dos limites do papel - sua poesia é correnteza de rio, marola, onda de mar, queda de cachoeira, gota profunda do silencioso lago, permitindo vida própria a cada poema nascido dessas 'águas internas'! Com seus poemas, Gisela consegue alcançar aqueles recônditos inimagináveis do pensamento, brincando com a poesia intuitiva, com a materialidade das palavras, como quem desenha sensações invisíveis e estas tornam-se capazes de nos tocar por dentro de forma sincera e firme, volátil e esguia.
Do mesmo modo que sua palavra sinaliza a preocupação com o outro, seja na dor física ou emocional (por exemplo, em Transição, p. 34; Calada, pp. 41-44; O demônio do meio-dia, pp. 55-56; entre outros); também mergulha em sua própria experiência, como bem diz Carla Guerson na apresentação do livro: "(...) Convocando as antepassadas e as mulheres de agora, quer falar 'de tudo o que enfrentou'. E assim nos apresenta às dores e às alegrias de sua vivência, permeada por elementos da natureza e por uma coexistência íntima com as inquietações da alma de uma mulher que aos poucos renuncia ao estado anterior, caminhando rumo à aceitação de um novo corpo, uma nova forma, na qual há 'fiapos' e 'tristezas encapsuladas' a se lidar (...)" (p. 17).
Todas elas - as mulheres - estão aqui pintadas de azul, amarelo, rosa - que importa a cor, se todas importam (as mulheres), se todas comportam (as cores)? Sim,
"(...) Pinte-me de azul,
disse a gigante
musa negra
que tinha em si
todas as cores
e não precisava
de nenhuma delas
para ser definida.(...)"
(p. 25).
Não há nenhuma dúvida de que Gisela Maria Bester veio para deixar sua marca registrada na poesia contemporânea brasileira, assim como também gravou sua assinatura na doutrina jurídica, em suas diversas publicações científico-didáticas, tendo em conta sua longa atividade profissional no magistério superior, bem como enquanto advogada e jurista.
Recomendo a leitura de Pinte-me de azul, porque é exatamente isso que a poesia faz, conforme já nos disse Rubem Alves: "ela nos convida a andar pelos caminhos da nossa própria verdade, os caminhos em que mora o essencial. Se as pessoas soubessem ler poesia é certo que os terapeutas teriam menos trabalho e talvez suas terapias se tansformassem em concertos de poesia!" (in: "Variações sobre o prazer", São Paulo: Planeta, 2011, p. 9)
Nic Cardeal, em 31 de maio de 2025.
capa do livro Pinte-me de azul!
Seis poemas de "PINTE-ME DE AZUL":
TRANSIÇÃO
Para onde eles foram,
os teus punhos de aço?
Tua cabeça de Jano?
Aquelas mãos de polvo
e os teus verdes pulmões,
tão cheios de esperança?
A mulher de mil velocidades só tem agora
paredes e portas de memórias,
véus e céus de antigos confortos
e no esfregaço um coração
que é tudo e cai
pelos olhos de uma criança.
(p. 34)
*
QUEM SOU EU?
uma alma administrada pela impulsividade
esse raio, esse clarão
o colpo di fulmine
que ao se ver
já
se
foi
(p. 49)
*
ÉPOCA
Execute aquela receita,
que pegou de sua mãe,
e a tem por perto,
mas nunca a fez.
Ali, com certeza,
tem amor condensado.
(p. 57)
*
MULHER ANFÍBIA
Entre arco e lira
com arco e flecha
a sagitária delira.
Entre.
Espreita um fluxo
peita um refluxo
desde que sua matéria primordial
- a bile -
veio como definitiva
no depois.
Do acaso objetivo.
Pé na vida
Deixar de molho
Enxaguar
Sem parar
E ainda não ser suficiente
Para tantos rituais
Perfumando a sala
Com seus cadáveres esquisitos...
- Não, obrigada,
sou alérgica a jasmins e goiabas.
E eis que então,
já quase desidratada,
mobiliou a paixão
com olhos arcaicos
língua fervente
e adornos ígneos.
Em troca pediu
após o banho
somente
um pouco de casa
e uma ampola de coração.
E que lhe falasse
em perspectivas
sem falácias
sangrando a linguagem
que foi criada
para não a traduzir.
E então ela falou eu já chego!
Mas, enquanto isso,
assopra as feridas
ama muito
perdoa fácil
cuida como fera.
E espera.
(pp. 60-61)
*
SEM TÍTULO, SEM NADA
e
quando
todas
as cores
estacionaram,
você foi embora
(p. 105)
*
LÍNGUA
a fala domada
e as partículas esfoladas
já não me interessam
apodrecem
vocábulos na fruteira
e a derradeira palavra
há de ser
bolorenta
com purpurinas
e cintilâncias
sem aldravas
na boca
antessala da língua
(p. 106)
*
fotografia do arquivo pessoal da autora
GISELA MARIA BESTER é natural de Ijuí/RS e reside em Curitiba/PR desde 1998. É bacharela, mestra, doutora e pós-doutora em Direito, área na qual exerceu por quase 30 anos o magistério superior e a escrita, tendo várias publicações nos gêneros científico-didático, de inserções nacionais e internacionais.
Advogada, foi Diretora Geral da Escola Superior de Advocacia do Estado do Tocantins (ESA-TO), Conselheira Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e também trabalhou nos Ministérios da Justiça e da Educação. Vencedora do Prêmio Nacional Instituto Ethos - Jornal Valor Econômico de Sustentabilidade 8a. Edição 2008 (1° lugar Categoria Professores).
Aposentada como professora universitária, a partir de novembro de 2021 dedica-se à escrita literária. Integrante dos coletivos literários Escreviventes, RuídoRosa, Marianas, Confraria da Poesia Informal, Grêmios de Haicai Águas de Março e Sabiá, O Zen do Haicai, TPM, Poetas Amigos de Isabel Furini, Mulherio das Letras Paraná e Mulherio das Letras Nacional.
É revisora e tradutora de textos. Criou e foi curadora do Espaço Poético Folhas Secas-Haicais Tradicionais, na Revista Cultural Mar de Lá. É colunista (Palavra Bicho) da Revista de Literatura Animalista. De 2022 em diante vem publicando poemas livres, haibuns, haicais, contos, microcontos, crônicas, resenhas e prefácios em revistas literárias do Brasil e do exterior (Bula, Philos, Sucuru, Nikkei Bungaku, Marezine, Mar de Lá, Voo Livre, Ecos da Palavra, Baleia, LiterArte, Awen Magazine Art, SerMulherArte, Artes do Multiverso, Aorta, O Navalhista, Animalista, Vinca), no jornal Nippon Já, na Newsletter Frestas e em coletâneas e antologias (editoras Bestiário, Tirant lo Blanch, Mondru, Máquina de Escrever, Oito e Meio, TAUP, Empório do Direito, Bem Cultural, Abarca, Selo Off Flip, Maralheios, Telucazu, Arpillera, Coelum, Donizela, Anadara brasiliana, Pangeia).
Participou da realização e foi a revisora do roteiro do Documentário 'Céu de Canela' (Tocantins, 2014, sobre os atingidos pela barragem da Usina Hidrelétrica de Lajeado/TO).
Recebeu o título de associada efetiva da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, Coordenadoria Paraná (AJEB-PR). Ocupa a cadeira 49 (patronesse Wislawa Szymborska) na Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia (AVIPAF) e a cadeira 40 (patronesse Luci Collin) da Academia de Letras do Brasil – Seccional Paraná (ALB-PR). Vencedora do 38.º Prêmio Yoshio Takemoto de Literatura 2024 (Modalidade Haicai), no qual em 2023 recebeu Menção Honrosa. Possui outras premiações, como nos 7º e 8º Concursos de Haicai de Toledo – Kenzo Takemori, e no Concurso de Poemas Helena Kolody 2024, da Academia Paranaense da Poesia. Teve originais de poesia classificados no Prêmio Carolina Maria de Jesus (2023), do Ministério da Cultura, conto de humor destaque e crônica finalista nos Prêmios Off Flip de Literatura 2023.
Pinte-me de Azul! (poesia, Mondru, 2023) foi sua obra individual de estreia na literatura, lançada na FLIP 2023 (conquistou o Troféu Capivara – Reconhecimento Literário, no Prêmio Literário da Cidade de Curitiba 2024).
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