Minha Lavra do teu Livro 02 | "CHÃO DE EXÍLIO", de WANDA MONTEIRO, por Nic Cardeal

 


Minha Lavra do teu Livro 02 
– resenhas afetivas – 

"CHÃO DE EXÍLIO": 

TODAS AS ÁGUAS DO TEMPO 

– O GRANDE RIO – 



Em CHÃO DE EXÍLIO (Belém/PA: Amo! Editora, 2021), WANDA MONTEIRO substitui a poesia pela prosa poética, para falar sobre a perseguição política diretamente sofrida por seu pai e, indiretamente, por toda a sua família, durante o período da ditadura militar. A autora homenageia o pai – o escritor, jornalista e advogado paraense Benedicto Monteiro (1924-2008) – trazendo sua história ao conhecimento dos leitores através de contos poéticos profundamente marcantes.

A narrativa é ora fictícia, ora surpreendentemente realista, repleta de recortes das lembranças de sua infância. Memórias que jamais se apagarão, pois marcadas de todas as dores possíveis pela frequente ausência do pai – acusado de subversão à ordem, devido à atuação em defesa da reforma agrária no Pará, quando acabou fugindo e, mais tarde, foi capturado e preso em Belém.

Os personagens de Chão de exílio são Miguel (o pai), Luiza (a mãe), Sabá (a guardiã das crianças), e os cinco filhos: Conceição (a mais velha), Carla (a segunda), a protagonista/autora (a filha do meio), o menino Benjamin e Inês (a caçula). Conforme relata a protagonista, ela e seus quatro irmãos, juntamente com a mãe, viveram isolados dentro de casa durante vários períodos, onde a televisão dava lugar aos livros, muitos livros, o que lhe possibilitava o acesso cotidiano à literatura e ao mundo das palavras: “Estávamos, todos, testemunhando a fuga das palavras que se escondiam entre paredes e portas fechadas. Se escondiam no aparelho de rádio que ficava na cozinha, permanentemente desligado por ordem de Luiza. As palavras fugiam, pediam exílio aos escaninhos do medo” (p. 21).

Chão de exílio é o próprio chão do lar onde seus habitantes se protegem do mundo externo caótico e truculento da ditadura, mas também é o chão do pensamento, do imaginário, das fantasias infantis – um chão que se estende para além do solo, alcançando espaços outros, maiores e muitas vezes melhores, porque libertos da apreensão, da angústia e do medo da cruel realidade que se espalhava pelo país àquela época.

Como diz muito bem a escritora Cinthia Kriemler na apresentação da obra, “Chão de exílio é uma exaltação às relações familiares profundas. Uma explosão de intensidades que faz bem a quem lê, revigorando emoções que o cotidiano cruel insiste em apagar ou esconder. A trajetória de um homem que soube se fazer admirar tanto em suas presenças quanto em suas ausências. E que ensinou aos seus filhos o respeito às pessoas e à natureza”.

Não há nada que escape ao olhar atento da pequena menina amante das letras, já alfabetizada aos 7 anos, e desde então seguindo os passos do pai na paixão pelos livros, pelos habitantes das matas, pelos seres da selva, das folhas, dos céus e das águas. A menina protagonista daquele exílio que se demora, mas também a autora que sabe retornar ao tempo presente e contar das lembranças para que possa suportar esse 'agora' [que também se demora]. A menina filha do rio, a menina que viaja no tempo e bebe de todas as águas, fazendo das emoções os melhores instrumentos para dizer sobre ‘o outro rio’ – aquele que nos navega em tantas águas por dentro e vezes outras nos afoga em saudades, em lembranças – até que tenhamos, como ela, a compreensão maior da “outra margem”, onde é possível buscar a palavra – “uma palavra que seja rio para assim ser palavra, uma palavra de ter começo, mas de não ter fim, pois que não ter fim é seu destino” (p. 16).

Os homens fardados, armados de metralhadoras, opressores, furiosos, iam e voltavam, invadiam a casa à procura do pai: “Éramos quatro meninas e um menino no escuro do medo, guardados pelas asas de afeto de Luiza” (p. 25). Mas Miguel fugira, e Luiza precisou explicar às crianças o que é subversão, comunismo, golpe, ditadura, democracia... E que o pai era o bom homem
que lutava pelos direitos dos pobres e dos trabalhadores rurais. E a menina escrevia, escrevia: “Vivíamos sob o terror daquelas botas nefastas e sujas e sob as ameaças constantes daqueles oficiais que vomitavam o poder de suas estrelas sem luz. Miguel foragido. Miguel sob tortura. Miguel preso. Miguel, incomunicável. E aquele implacável silêncio, por dias, meses, anos... Foram intermináveis luas de uma estação chamada Silêncio” (p. 35).

As crianças não iam à escola por mais de ano. Exilados em sua ilha – a casa rosada – o mundo só cabia ali, da casa para as varandas com cobogós, da casa para o quintal, para o abacateiro, esbarrando nos muros – não havia mais lugar para a família, além daquelas paredes exiladas em silêncio, medo e exclusão. 

Um exílio de aprendizados: o do silêncio – quando o tempo era mudez e vazio de respostas; o da ilha – uma solidão cercada de muros por todos os lados, um chão expulso do cotidiano das ruas, das escolas, das praças, das igrejas, da vida como ela deveria ser. O aprendizado “da morte que não era morte” (p. 44); o do fogo queimando as palavras: “Lembro das palavras ardendo em chamas. Lembro daquela ilha feita de casa e quintal. Lembro daquele chão sendo ferido pelo fogo” (p. 54). O aprendizado da imagem –de Miguel algemado, rodeado de militares, oficiais e soldados, da coragem no olhar de Miguel: “não há medo, não há covardia, não há culpa. Nos seus olhos o que há é coragem, uma profunda coragem” (p. 62). O aprendizado da travessia, quando Miguel decide seu destino – aquele que surgiu da fusão do amor pela família e da coragem da consciência política – uma histórica travessia de vida. O aprendizado da liberdade de pensamento, ainda que com o corpo preso em exígua cela: “E num átimo de tempo, lhe veio à mente a palavra liberdade. E lhe veio a mais clara ideia de que ele era livre para pensar. E de que o pensamento era o seu chão, era a terra onde podia nutrir, livremente, seu imaginário e suas ideias” (p. 82). O aprendizado da ausência do marido e do pai, porque Miguel chegava e partia, quase não ficava... e Luiza “costurava lembranças” – era necessária, vital aquela costura contínua, para não perder o chão... “Na constrição de seu silêncio, ela fechava os olhos e ficava por horas, tecendo o fio da memória até desenhar saudade. Na saudade, ela encontrava um lugar seguro para estar” (p. 89). O aprendizado do recomeço, quando finalmente Miguel voltou – para ficar – e então foi preciso reaprender a alegria: “Havia força e coragem em seus olhos. Em Luiza, havia os mesmos instintos de sobrevivência. Entre os dois, havia um pacto mudo para um recomeço. (...) A presença de Miguel fez das horas e dos dias uma lavoura onde todos plantavam sementes de alguma felicidade. Fizemos desse tempo, prenhe de esperança, uma cotidiana aragem das horas com gestos e palavras. Nessa ilha, uma nova música vestiu o seu silêncio” (p. 100). E, finalmente, o aprendizado de um deus  pois foi necessário suportar um longo chão de exílio, que se estendeu no tempo como dobraduras marcando a pele da alma, foi preciso secar muita água salgada chovendo dos olhos, seguir no tempo como se fosse ele um tear de eras, rasgando noites e dias, e noites e dias, e mais noites e dias, até este 'nosso agora' que se demora... e como se demora, nessa lenta agonia das horas esticadas em anos de pandemia, de fascismo, machismo, racismo, de violências de todos os tipos ameaçando gêneros, de um capitalismo sugando vidas e espalhando misérias humanas de todos os tipos... Sim, para aprender um deus foi preciso escrevê-lo por dentro e por fora: “(...) fiquei a pensar na palavra deus e se ao meu modo creio o mundo o mundo é feito de palavras, esse deus pertence a quem lhe escreve e a quem lhe inventa o momento primeiro, e lhe dá forma e lhe diz do derradeiro (...)” (p. 106).

Não. Não há como sair incólume à viagem por este chão... um chão de rios, de tantas águas, tempestades erguidas de silêncios e palavras nunca ditas... mas profundamente sentidas, nessa “terra de vida e morte” que é a estranheza daqueles [e desses] homens incorporados de incontáveis atos insanos... Pois há um exílio que se perpetua no tempo, vai e volta pelas nesgas do calendário, como se fosse possível ultrapassar os túneis das horas, resgatar – pela pele que arde na alma – todos os chãos possíveis e imaginários, porque as memórias ficaram fincadas no chão das palavras, e esse 'agora' que nos enreda também teima em nos fazer personagens da espera – aguardando a chegada de um novo tempo, onde tenhamos outra vez a esperança como melhor estrela-guia nos céus de um novo chão sem exílios, mas tecido de comunhão...

(Nic Cardeal)



Um excerto do livro CHÃO DE EXÍLIO:

"(...)

Aprender o fogo

               Perdi o fio das horas
                 Tenho-as delineadas
Em datas perdidas nas dobras do tempo
               Lanço-me ao passado
       Num traçado de inexata rota
             Levo apenas os sentidos
Para o cultivo de imagens imperecíveis

Ouço o canto dessa estação a chorar nesse junho o seu fastio de chuvas. Adoeço à míngua dessas águas. Sinto os rios indo no ruflar dos ventos.

O quintal é todo chão  que temos para correr e ver o sol. O quintal é tudo que temos para contemplar:

No dorso do besouro, a diáspora do sol. O sol, sísifo dourado em sua escalada de subir a leste, para depois cair a oeste, feito canção triste, no chão coberto de flores. O quintal, esse rosto a oeste, feito de folhas vivas, escalando o ar: um rosto, que de manhã, sorri para quem acorda e de noite, depois de silenciar a grandeza das mínimas coisas, canta para quem dorme.

A memória abre fendas no tempo.

Lembrar, procurar o fundo de nós é como escavar o tempo. Mas o passado não é estável. Ele não aflora à memória com os mesmos cheiros, com as mesmas cores, com a mesma luz.  O passado não pode ser vivido, mas pode ser sonhado. São outras as palavras que alimentam essa estação sonhada:

A marca do silêncio permanece cravada na memória dessa minha estação, reescrevo-a num entremundos de palavras. As palavras que têm sempre o seu destino, mesmo quando erram o seu itinerário, mesmo quando dizem das reminiscências ou de um quê desbotado em paisagens guardadas com desmotivo, mesmo quando ficam presas num tudo que não quer ser lembrado - um tudo emoldurado em desmemória.

Mas há outra marca viva, acesa, com cheiro de brasa ardente, com o calor das chamas: A marca do fogo. Não o fogo das fogueiras sagradas, que serviam de ritual para as histórias  de encantarias contadas pela voz de Berta, minha avó.  Mas sim, o fogo das fogueiras que mataram as palavras pulsando em livros. Essa outra marca do fogo a vingar, do chão da memória, sua paisagem movente feita de assustadoras salamandras com seus olhos e bocas de pavor.

Naquele chão onde viveríamos, ilhados dentro da casa, o exílio do silêncio e do isolamento, havia um tempo dividido e ordenado: Comer no tempo da casa, estudar, brincar, tomar banho e dormir no tempo de Luiza.

Luiza era magra, tinha a tez muito clara. Sua pele fina como o véu transparente, ao ser singrada pela luz do sol, deixava visível o azul esverdeado de suas veias. No seu rosto: O púrpura de seus lábios e de seus cabelos. Era sua face de mãe que amanhecia os dias com o prodígio de luz em seus olhos.

Havia, nessa ilha, um tempo e um espaço que eu roubava para sonhar: a biblioteca de Miguel. Lá eu me recolhia e me aninhava no sonho da leitura. Miguel, antes de fugir para não ser preso pelo comando militar, tinha arrumado seus livros, e havia separado os livros que eu gostava de ler numa prateleira baixa, na base de sua mesa: Era nosso lugar secreto. Ali, embaixo de sua mesa, eu me escondia de Luiza para ler e sonhar.

Naquela tarde, Luiza estava tão alheia que esqueceu de dar conta de nossos afazeres. Ela parecia angustiada, pressentira algo de ruim. Aproveitei o silêncio de suas sentenças  cotidianas e fui me abrigar na biblioteca. (...).

Não! Eu não lembro do livro que eu estava lendo nem do sonho que eu sonhava, só lembro da voz de Luiza: Crianças! Crianças! Eles voltaram, os malditos voltaram. Corram todos pro pátio e fiquem lá.  Fiquem em silêncio

Foram tantas vezes que eles invadiram e saquearam a nossa casa, dezenas, talvez. Foram tantos os momentos de pânico que experimentamos a cada invasão, ao sermos confinados em cárcere privado dentro de um quarto ou do porão, no escuro do escuro. Mas dessa vez foi diferente. Dessa vez, eles deixaram outra marca: A marca do fogo. (...)

Eles, os malditos, invadiram a biblioteca e começaram a vasculhar tudo. E para demonstrar o poder que representavam, começaram a derrubar as estantes no chão. Pegavam os livros, abriam suas páginas e depois chutavam esses livros contra as paredes do cômodo. 

Não! Não, eles não encontraram as provas que queriam, nunca encontrariam. Miguel era um homem feito de palavras e elas estavam com ele, em seu pensamento, em algum lugar da floresta. As palavras estavam em fuga, assim como Miguel. 

Lá no pátio, voltei a ouvir o som das botas descendo a escada que dava para o quintal. Saí de dentro do medo, me debrucei sobre o parapeito do pátio, para olhar para o quintal: Fui atraída pelo som do estalido da madeira queimando e do vento movendo as labaredas daquela imensa fogueira feita de palavras: Palavras que contavam histórias, que escreviam poemas e que diziam dos significados e das significâncias dos entes e das coisas desse mundo feito de palavras. 

Lembro das palavras ardendo em chamas. 

Lembro daquela ilha feita de casa e quintal. 

Lembro daquele chão sendo ferido pelo fogo.

(...)"

[pp. 47-54]


fotografia do arquivo pessoal da autora 



WANDA MONTEIRO é natural de Alenquer/PA. É advogada, escritora, poeta, revisora de textos, produtora editorial e cantora. Escreve ensaios, poemas, contos e romances. Seus textos estão publicados em diversas revistas literárias impressas e virtuais, como por exemplo: Acrobata, Ruído Manifesto, Zona da Palavra, In Comunidades, Intacta Retina, Diversos Afins, Literatura Br, Gueto, Mallarmagens, Revista Ser MulherArte, Relevo, entre outras.

Participação em antologias e coletâneas: 'Senhoras Obscenas'; 'Proyecto Sur Brasil, Sarau da Paulista'; 'Mulherio das Letras'/Lisboa; 'Ato Poético' (Editora Oficina, org. Márcia Tiburi e Luís Maffei); 'Antifascistas - contos, crônicas, poemas de resistência' (Editora Mondrongo, org. Leonardo Valente e Carol Proner); Zine 'Despacho' (Editora Corsário Satã); Plaquete 'Discurso Sobre la Tierra' (Editora Mirada); entre outras.

Livros publicados: O beijo da chuva (Amazônia/2008); Anverso (Amazônia/2011); Duas Mulheres Entardecendo (com Maria Helena Latinni, Tempo/2015); A liturgia do tempo e outros silêncios (Patuá/2019); Aquatempo - Aquatiempo (edição bilíngue em português e espanhol, Literacidade - Patuá/2020); e Chão de exílio (Amo! Editora/2022).



Comentários

  1. Parabéns a você, Nic, por nos trazer mulheres que escrevem de forma orgânica. Wanda é mulher das águas, sua escrita é convite-merguho!

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