A POESIA E A PROSA DA MÚLTIPLA ARTISTA ORLEYD FAYA | PROJETO 8M


fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Mergulhe na palavra - na poesia, na prosa, no teatro ou no cinema - da múltipla artista ORLEYD FAYA:


POEMA BROTANTE

os raios tão brilhantes
do sol que nasceu
arrebatando-se
(ele mesmo)
de debaixo da terra...
                           Furtivo doido que
                           incendiou esta cabeça
                           (oca)
                           tanta alegria
                           (louca)
                           Furtivo sol das manhãs de hoje.
um beijo
nos teus olhos
         SOL
um beijo
nas tuas mentiras
um beijo no teu corpo inteiro
          SOL
calor das noites de ontem.
                  um sol
resfriado de inverno
novamente se ergue...
... esparramente de intensa luz
       desencerrada  da dor...

(* poema integrante da Mirante Revista Literária Santista, 03/04/2013)

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-*-


(...)

TERCEIRA LEMBRANÇA: Tudo em mim ecoa, guardado 

Eu trago aquela noite como se na memória 
Como num obrigatório esquecimento 
Como se nunca houvera 
Como se fosse ser hoje e eu soubesse. 

Eu tenho aquela noite e posso dizê-la de todos os ângulos 
A começar de qualquer ponto 
Posso traçar com os fatos uma quase roda correta. 

Eu guardo aquela noite e penso que é o bastante 
Que tudo nela fica justificado. 

Mas, às vezes, tenho medo 
Um medo pardo de que não. 

(...)

(* excerto do texto ISADORA ou Mas essa lua, mas essa vertigem, mas isso tudo... - Momento para teatro em seis movimentos e cinco lembranças, integrante do livro 4 Mulheres  - Textos Breves para Teatro e Cinema, p. 35)

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FRESTAS

Moro em um cubículo. De teto baixo e cortinas grossas. Grossas porque é necessário. Porque ninguém pode, ninguém deve saber que estou vivendo aqui. 

Venho me esquecendo de tudo. Pouco a pouco, mas continuamente. Muito em breve esquecerei de mim. 

Este o motivo porque emprego as horas anotando coisas. Toda espécie delas. Tudo o que percebo. Tudo o que intuo. Devo estar alerta. Devo estar atenta. Mas estou cansada. 

Durmo sempre que amanhece. Assim que amanhece é necessário que eu durma. Habitar a noite torna mais possível que eu permaneça não sabida. 

No entanto, a cortina é grossa. Já disse. Sou obrigada a, por muitas vezes, buscar nela a fresta através da qual posso enxergar a rua. Porque preciso estar à espreita do amanhecer. Preciso dormir. 

Sei que é perigoso. Eu sei. Movimento arriscado esse, o das necessárias espiadelas. Pois foi num desses mesmo que tudo mudou por aqui. 

No desafio do risco de abrir a cortina, cruzei meus olhos com outros olhos, hoje. Olhos de alguém que cortava a rua que escorre exato diante da babel onde habito. Edifício infinito o meu, infinitos cubículos emparelhados. 

E agora? E eu? Terei que fazer diferente. Porque é imperioso que eu desça as escadas do prédio, ganhando a rua antes que aquele que me viu já não possa mais ser visto. O estranho que olhou meus olhos, tenho que alcançá-lo. Descendo as escadas sem poder ser vista. Cruzando cubículos pelo caminho. Cubículos iguais ao meu. 

Tudo agora em diante depende de que eu o encontre. Esse que cruzou comigo os olhos e, de estranho que era, ganhou dimensão. Tudo depende disso, agora. De vencer, degrau por degrau, a longuíssima escada que conduz à rua.  Ir atrás dos olhos. Sem ser vista.

(* conto integrante da antologia Mulherio das Letras Contos & Crônicas - Volume 3, pp. 54-55)

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SOBRE MENINAS E BARCOS 

Meu tempo é aquele das perdas. Tempo das pedras. Esse nono andar da fileira de portas é de onde me esforço pra ficar livre de tudo que seja relevante. Mexilhão dourado ladeando conchas de ferro e concreto. Geringonça muda que arranha o céu e sangra. 

Contemporâneo, dirão. Muito contemporâneo. E eu suspirarei de alívio. 

Pés suados. Reféns de sola e de cadarço. Dez dedos a partir das duas palmas. Mãos, patas de cima. Fui bicho e já não me lembro. 

Buraco na parede o nome é janela. Horizonte escasso pra quem nasceu na beira do mar. 

O ar, o ar, eu preciso dele. Escadas, é isso: solução tão óbvia. Degraus, degraus, degraus precipício. Então a rua. Só por isso a lágrima. Eu sou deserto e não há nada em volta. 

Chegou a Menina. Tanta pena ela teve, que se sentou ao meu lado. É de imediato que a reconheço. 

- Em meu socorro? - Perguntei, sabendo antes, que sim. 

- Onde os meus barcos? - Só ela sabe. Na partida, guardou-os todos consigo. 

- Eram promessas da viagem.  Pra onde foram? Como os perdi?

A Menina permanece, mas nem palavra. Porque os barcos estão com ela. Nunca os deixou seguir pra longe de si. 

Escorrega. Gangorra. Argolas e o balancê. E ela bailava alto, mas tão alto. E, na passagem, o riso solto e as unhas chispando areia por tudo. 

- Se no oco do meu barco, - pensei  -, também eu podia desafiar o vento. 

Pousamos nossos olhos em nossos olhos. Ousei, já fazia tempo que não. 

Era minha a hora, agora. Ela entendeu, absolutamente. A Menina sempre entende. 

- Havia barcos na minha infância, Menina. De dobradura ou de madeira e sal. 

Achei que me gabava. Mas eu sem ela era sempre tão tola! Quanto à Menina, ela apenas deu de ombros, sorriu. Tinha certeza de que estava feito. E partiu. 

Era verdade. Sempre era verdade. Virei na direção de onde ouvi as vozes. Eram minhas. As minhas vozes. 


- Mãe, Rosa e eu fomo na beira, hoje. Vê as barca que passava, vinda do mar. Os casco branquinho, as vela colorida e enfeitada de luz. Bonito que só vendo. Mas sabe, mãe, depois eu fiquei cismando: pensô se fosse de noite que esses barco chegava? Aqueles pontinho de luz, boiando no escuro do mar? Foi bonito, sabe, mãe? Eu, pelo menos achei. Mas se era de noite, eu fiquei cismando... se era de noite, devia de sê muito mais. 

A Menina soube.  A Menina sempre soube.

(* texto integrante da Antologia de Poesias Mulherio das Letras, pp. 58-59)

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DE COMO TUDO GRITA QUE SIM E EU DIGO QUE NÃO 

O teu nariz circunflexo eu quero 
(O mapa da cidade)
Vai embora, mas antes eu compro o teu nariz 
(Um óculos de reserva)
Depois, pode ir partindo, de respiro preso e olhos de persiana descida 
(Meu livro de cabeceira)
Salta os meus degraus pra sempre adeus adeus adeus 
(Remédios que eu talvez precise)
Eu não queria que fosse assim, não queria 
(A foto dos avós)
Mas no meu olho só se reflete o teu umbigo 
(O histórico escolar)
E a confusão, no bico imperfeito do teu peito esquerdo 
(Dois pares de meia)
Quando te olho nas pupilas, quanta vergonha que sinto 
(O endereço dos parentes)
Mas se eu te dissesse: você é tão docinho...
(Meu brinquedo de criança)
... que nem que nem que nem pitanguinha madura...
(e o talão de cheques)
... você me perdoava por tudo, perdoava?

(* poema integrante da 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras, p. 98)

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FAROL

Amarelo aflito: amarelo corte na multidão se abre verte você corte em mim reabre amarelado farol agora falta pouco então seu corpo vira nesta direção sua cara holofote na minha direção varre tudo você me viu será nua no amarelo flagrante delito de doçura você me viu será luz amarela vazando olhos é daqui a pouco esse encontro e agora corro perigo quem sabe você me viu adeus um outro dia talvez por sorte hoje repito um amarelo adeus.

(* texto integrante da 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras, p. 99)

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PANDORA E A POMBA BRANCA 

Então onde está Pandora? Grito seu nome. Preciso dizer a ela que não há maneira de escorrer de si a poeira das bombas. Afligida a carne, cada estilhaço há de volver ao pó. 

Você destampou a caixa, Pandora. Corrompeu o lacre, já sabemos tudo. Libertas as pragas, todos os horrores dançam entre nós. Corre a gira. As abominações estão em festa. Fatos de gala. Desdentes.

Mãos estendidas, escancaradas bocas. Menina e menino, o sangue e as vísceras pelo chão da casa.  Miséria ancestral. 

Negreiros de látex combatendo ondas. Noites seguem dias seguem noites seguem dias debaixo do céu, sem descanso. 

Cruzadas de balas, não são de alfeniz. Encontro marcado: escolas, favelas, no leito, as esquinas. Chumbo na pele tenra que ainda esperava em barriga de mãe. Doído brinquedo de enfileirar caixões. 

Rastro macabro dos anonimatos, exausto cortejo. Ao passar por perto pergunta a cada um, qual o seu nome. Fala da bandeira que será erguida com os que caminham. Diz que ela é branca e que muito breve há de surgir no alto. 

Da água dos olhos rasos fabrica os unguentos, Pandora. Só ela - Esperança - permaneceu dormindo no fundo da caixa. Limpa cada fresta do jarro, agora: a tampa segue aberta. É tempo de lavar o seu jarro de milênios. Hora da redenção. Depois vasculha o jarro. Revira tudo, Pandora. Não deixa restar semente nenhuma de dor. 

Tem pressa, Pandora. As abominações estão repousando. Lacra de imediato a caixa, engole a chave. Ata forte o retalho branco na ponta da vara e leva-o até bem alto. Assim que pudermos vê-lo será o bastante. Sacudindo ao vento Pomba Branca. 

(* conto integrante da I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz, p. 111)

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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.

fotografia do arquivo pessoal da autora 

ORLEYD FAYA (Orleyd Rogéria Neves Faya Corrêa) é natural de Santos/SP e reside em São Paulo, capital. É graduada em Direito  pela PUC de Santos/SP, bacharel em Direção Teatral, pela ECA/USP e mestre em Artes Cênicas pela ECA/USP. Doutora em História Social pela PUC/SP. Foi membro do 'Grupo Picaré de Literatura e Arte', núcleo de poetas liderado por Raul Christiano Sanches, em Santos/SP. 

Integrou o 'Núcleo de Dramaturgia do Centro de Pesquisas Teatrais - CPT, SESC Anchieta, sob coordenação de Antunes Filho. Fez parte do 'Núcleo dos 10 de Dramaturgia', no Teatro Célia Helena/SP, sob orientação de Luís Alberto de Abreu. Professora universitária, ocupou as cadeiras de Estética e História da Arte, História do Teatro Ocidental e Literatura Dramática (Faculdade de Artes Cênicas/Universidade Monte Serrat), História do Rádio e da TV (Faculdade de Rádio e TV/Universidade Monte Serrat) e Expressão Corporal (Faculdade de Artes Plásticas/Universidade Santa Cecília dos Bandeirantes). Idealizou e coordenou o 'Projeto Mutirão', de 2002 a 2006, no Teatro Plínio Marcos/SP. Foi responsável pela Direção Artística do 'Núcleo MOTIN - Movimento de Teatro Independente', de 2008 a 2010. Foi coordenadora dos Teatros Municipais de Santos/SP (Teatro Coliseu, Teatro Municipal Brás Cubas, Teatro Guarany e Teatro Municipal Rosinha Mastrângelo), no ano de 2013. Apresentou o espetáculo teatral 'Mulheres Poetas - Raízes Portuguesas', que estreou em 2017 (teaser no link: https://youtu.be/WBdE_Zx87Uw). 

É escritora, atriz e diretora teatral. Além de poesia, contos e crônicas, também escreve dramaturgia, pesquisa histórica e roteiros para teatro e cinema.

Livros publicados, participação em antologias e coletâneas: 4 Mulheres  - Textos Breves para Teatro e Cinema (obra da autora, Santos/SP: Teatraria, 2015); Mulherio das Letras Contos & Crônicas  - volume 3 (antologia, org. Henriette Effenberger, Recife/PE: Mariposa Cartonera, 2017); Antologia de Poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: Costelas Felinas, 2017); Mar Selvagem - Vicente de Carvalho Revisitado (antologia de poesia em homenagem a Vicente de Carvalho, org. Márcio Barreto, Santos/SP: Imaginário Coletivo, 2017); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz (org. Alexandra Magalhães Zeiner e Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); entre outras.




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