Para não dizer que não falei dos cravos 14 | UM CONTO DE MIGUEL ARCANGELO PICOLI
Para não dizer que não falei dos cravos (14)
Um conto de
Miguel Arcangelo Picoli
"KORÉ CAFÉ"
Tudo tão igual... pessoas, notícias, conversas... a cidade repleta de atrações, exposições, dança, teatro, cinema, mas nada me atraía. Olhei o que havia para o jantar... dezenas de diferentes potes que só precisaria aquecer, mas nenhum me apetecia.
Pensei em ir ao parque. Meu irmão disse que deveria e eu precisava ver algo do local para lhe dizer que havia ido. Vesti uma roupa qualquer e saí com tempo fechado, escuro. Melhor seria se estivesse chovendo e não pudesse ir...
Lá chegando, após estacionar refugiei-me no primeiro banco que vi, o mais afastado da feira, vendedores e ruídos da avenida. Nem os pássaros nada diziam. Era o que desejava ... nada.
Sem pensar passei a observar abelhas numa flor, uma flor qualquer.
— Pensando no mito de Perséfone?
O comentário me fez ver que não estava só naquele banco, e não sabia por quanto tempo. De qualquer forma as abelhas de Perséfone não haviam me passado pela cabeça e tentei me lembrar se a conhecia, talvez da clínica ou hospital, paciente ou funcionária..., mas não.
— Simplesmente não consigo pensar em nada, respondi à mulher tão bem-vestida - contrastando com o velho agasalho esportivo que usava, embora isso nada significasse - e com adorável e para mim inédito perfume. Naquele momento tudo o que não queria era falar com alguém, conhecido ou não, e confiei em meu semblante medonho para deixar isso muito claro.
— Uma merecida pausa esportiva?
— Ainda não saí do lugar...
— Amanhã, talvez.
— Não...
— Há fases assim, em que tudo não nos basta. Não acredite no mundo, mas em contos de fadas. Pense... influência nas estações e ciclo da natureza... novas fases.
— Não me condene... – respondi como quem aprecia o gesto, mas o dispensa, uma vez mais por não querer falar sobre isso. Ao menos a amargura deveria ser somente minha.
— Ao contrário, te absolvo! Já pensou em procurar ajuda médica?
— ... Sou médica...
— Compreendo. O que me diz de alguma leitura?
— Meu irmão tem livraria, e a pilha de livros que me traz só aumenta.
— Então está cercada de poesia e arte...e um irmão atencioso. Entendo... Mas sei de algo que possui comprovado efeito mágico, instantâneo e sem contraindicações... um café lhe fará bem e mudará seu dia! Conhece o Koré Café?
— Não...
— Fica a uma quadra daqui. Vamos testar essa poção? E não precisamos correr...
— Agradeço. Talvez outro dia...
— Ora, vamos, verá que vale a pena conhecer... isto está perfeitamente ao seu alcance... que tal?
— Deixei a bolsa no carro.
— Nada disso. Por minha conta e pode repetir o café, se gostar...
Meu desânimo em conversar era maior do que o de tomar café com uma simpática estranha, então achei melhor abreviar o calvário. Mas cogitei a possibilidade de ela sair e me deixar para pagar a conta. Tive tantas experiências com pacientes que fiquei escaldada. E por que essa gentileza? Certamente não por minha aparência nada atraente, descuidada... abandonada.
Era mesmo uma quadra de distância e fui abençoada com seu silêncio durante o trajeto em que caminhamos lado a lado.
— Chegamos. Entre – disse enquanto abria a porta.
Cafeteria pequena com aquele aroma tradicional, gostoso. As mesinhas tinham bonitos guardanapos e vasinhos com flores naturais diversas, coloridas, e raminhos de trigo. Um encanto, somado à música, doce, Alina Orlova, Anna Ternheim, Melissa Horn, JFDR, Eydís Evensen.
Mas, apesar do ambiente agradavelmente iluminado, acreditar no poder miraculoso de uma bebida quente que há muito conhecia ... só estava ali para ser educada. Escolheu uma ao lado da janela de vidro, com ampla visão da rua que permanecia escura e sem qualquer brisa pelo que podia ver das árvores. Logo o sol iria se pôr, sem ter sido visto. Profundezas do outono, de dias e noites iguais ...
Mal nos sentamos, a garçonete veio anotar o pedido, feito com elegante desenvoltura. Logo nos serviram floresta negra e outra tortinha que adorei, à base de maçã em massa folhada, quentinha, com uma porção de frutinhas no prato. E o café, gostosíssimo.
— Acabei de notar um esboço de sorriso... sabe, apesar da fria tristeza sussurrar em nossos ouvidos, a esperança possui garras afiadas...
— Não sei o que lhe dizer... vivo um vazio sem beleza... não mais reconheço a paz.
— Não há necessidade de palavras.
— Me compara com Perséfone...?
— Transita entre a vida e a morte.
— Não quero falar sobre isso.
— Sigilo médico?
Não dava para ficar zangada com ela. Pretendia uma boa ação, ficar feliz com a felicidade de outra pessoa – estranha, inclusive.
— Olhe, agradeço o café, realmente gostoso. Espero retribuir e, talvez noutra oportunidade, eu esteja mais sociável. Peço que me desculpe, mas nem deveria ter saído... só quero ir para casa...
Demonstrou total compreensão e não ter ficado chateada.
— Perfeitamente. Também eu tenho minha armadura. Quer mais alguma coisa?
— Não, obrigada.
— Está bem, a acompanho até a rua. Leve esse raminho de alecrim. Será o sabor da noite que trará ventos suaves antecedendo longos dias de luz e vida renovada.
Saímos e, desconfortável, precisei lhe dizer que estávamos saindo sem pagar a conta...
— Ah, desculpas, sequer lhe disse, mas sou proprietária do Café. Meu nome é Atena.
Paramos na calçada, com o tempo ainda fechado. Ela era um pouco mais alta que eu e estava à minha frente. Em seguida, aproximou-se como se fosse sussurrar um segredo ao meu ouvido, e beijou suavemente meus lábios. Não correspondi, não entendi, mas senti gosto de mel, gostoso mel. Quando se moveu, a luz do sol acariciou meu rosto.
— Volte para conhecer outros sabores...
Dizendo isso voltou ao Café e eu, para casa. Era para eu ter ficado feliz pela surpresa, nova amizade, presente, pela força, mas... Deitei-me no sofá, sem nada pensar e acordei logo que meu irmão chegou. Depositou outros livros na estante, beijou-me e foi com sua mochila para a cozinha.
Num instante pôs-se a preparar uma massa com almôndegas. Sabia que eu gostava. Minucioso nas compras, trazia consigo tudo que iria utilizar, exceto utensílios os quais sabia melhor que eu onde estavam. Sempre fora agilíssimo e... silencioso... extremamente silencioso. Escolhia e manuseava tudo sem qualquer ruído (e eu amava isso). Além de tudo cozinhava divinamente e tinha seus temperos... divinos, posso dizer, não dispensando açafrão.
Trouxe-me um buquê de flores do campo, muito lindo, que já colocou num jarro e deixou na sala, enquanto fiquei à mesa na sala de jantar, ao lado da cozinha de onde nos víamos e conversávamos, além de apreciarmos uma garrafa de J.P Chenet Cabernet, outra delicadeza que sabia me agradar.
— Obrigada pelas flores...!
— Não é curioso que coisas tão lindas venham de debaixo da terra? Logo o jantar estará pronto.
— Estou sem fome.
— Até ficar pronto, estará. Como foi seu dia?
— Igual.
— Saiu?
— Não.
— Conheceu alguém?
— Não.
Se eu lhe dissesse que conheci alguém que respirava poesia...
— Não foi ao parque?
— Andou me seguindo...?
— Nem poderia. Acabei de chegar de viagem. Você não leu nenhum dos livros que lhe trouxe.
— Como sabe?
— A conheço, e os conheço. Apenas alterou a ordem deles. Suas flores morreram...! – disse enquanto se dirigia para a sacada para ver outros vasos, ao mesmo tempo em que o aroma vindo da cozinha já se tornara convidativo. Retornou logo em seguida.
— Sim.
— Pelo juramento de Hipócrates não deveria ter restabelecido a saúde delas?
— Essa missão não abrange botânica... e não me fale em medicina.
— São seres vivos... ou eram...
— Perséfone tinha irmão?
— Sim, um, e vários meio-irmãos. Como esse ramo de alecrim veio parar aqui?
— Ah, trouxe outro dia.
— Parece tão fresco!
—Alguma estrela visível?
— Não.
Como eu desconfiava...
— Mas há um vento suave. Vi a menininha que morre de medo de você. No elevador.
— Até eu tenho medo de mim...
— Você carrega lágrimas que não são suas, e ela teme injeções. São papéis diferentes. Você não deveria se refugiar em pessoas, na sociedade, no caos.
Em poucas horas era a segunda pessoa que me dizia a mesma coisa... Hermes já tinha a mesa preparada com salada pronta, repleta de ervilhas frescas que sabia eu adorava.
— Está com aspecto melhor...algum remédio?
Sensualidade poética, pretendia dizer, mas não o fiz.
— Sem receita? Não...
Logo estava tudo pronto. Foi um jantar adorável, carinhoso e, após deixar a cozinha impecável serviu-me gostoso café, e se foi. Nem poderia ter vindo, mas não me deixaria só em meu aniversário. Era para eu ter ficado feliz com sua presença, atenção, livros que sequer vi as capas, flores, vinho francês, jantar, mas... voltei ao sofá.
Acordei de manhã com a chegada da empregada indicada por meu irmão, que começaria naquele dia e que foi logo abrindo cortinas e janelas, deixando o sol entrar.
— Estou abrindo por causa das abelhas. Assim elas saem. Se a senhora for alérgica e for picada, pode precisar ir ao médico.
— Sou médica...
— Insetos sociais são sinais de vida, renovação e prosperidade. Sem contar o mel.
— Não me diga...
— A senhora viu que na sacada há um ninho de pássaros com ovinhos? Logo terá companhia e música pelas manhãs... A senhora quer tomar café agora?
— Não, obrigada. Irei a uma cafeteria e depois à livraria de meu irmão... Quero levar alguma sobremesa para ele e escolher alguns livrinhos infantis.
Achei melhor me levantar. Fui à sacada para ver o ninho e para o banho, demorei-me em me arrumar. Passei pela sala, vi com atenção os livros que havia ganho e sobre os quais conversaria com Hermes, e notei algumas abelhas protagonizando interações com diferentes flores.
— É um caso de amor – disse a empregada – enquanto a olhava tentando entender a que se referia.
— Elas e as flores...
— Ah, sim...
— Minha irmã terá bebê hoje. Um belo dia para nascer.
fotografia do arquivo pessoal do autor
MIGUEL ARCANGELO PICOLI é natural de Itatiba, interior de São Paulo. Nasceu em 6 de novembro de 1962. Atualmente reside em Morungaba/SP.
Publicou seu primeiro livro de crônicas, intitulado Momentos, em 2018, pela Desconcertos Editora. Em 2019 lançou Contos para Cassandra, dedicado à escritora Cassandra Rios, pela FoxTablet, mesma editora de seu terceiro livro, o romance Lyz, lançado em 2024.



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