Cineasta Petra Costa fala sobre machismo e mulheres

A diretora Petra Costa - arquivo pessoal



Indicada ao Oscar, Petra Costa fala sobre machismo e mulheres em sua trajetória.

Cineasta sob ataque da família Bolsonaro e de órgãos do governo escreve sobre machismo e feminismo com exclusividade à Marie Claire, que reproduzimos aqui na Ser MulherArte integralmente.

Saí do cinema chorando. No metrô, começaram os soluços. Primeiro, pequenos. Depois, compulsivos. Meus soluços não se intimidaram pelos olhares curiosos. O filme era Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanszky, e os diversos filmes ainda não contados que ele ativou na minha memória. Vi nele Elena, minha irmã. Me vi. Vi minha mãe. Vi as dezenas de jovens mulheres que conhecia e passavam pelo que vim a chamar de complexo de Ofélia. Um afogar nas próprias emoções no vir a ser mulher.

Diferente da narrativa de desadaptação masculina, tão narrada no cinema e na literatura, e que geralmente fala de confrontos com instituições (escolas, universidades, exército ou hospitais psiquiátricos), o sofrimento que vi em Elena, em tantas jovens mulheres era silencioso. Se dava dentro da casa e só era testemunhado pelos íntimos. Quando voltei pra casa, me prometi que faria um filme contando essa história. Pensei em achar um diretor que se interessasse.

Ser diretora parecia algo intangível naquela época. Mas o fato de ver Laís, uma mulher e brasileira, dirigindo aquele filme, fez com que se tornasse algo imaginável. Oito anos depois, eu faria Elena, um documentário sobre minha irmã, com uma equipe majoritariamente feminina. Na tela, apenas meu pai e um amigo da minha irmã dão curtos depoimentos. Foi uma opção. Queria que a história fosse sobre o feminino. Em quase todos os debates sobre o filme me perguntavam sobre a ausência de homens como personagens. “Por que não perguntam sobre a ausência de mulheres em Poderoso Chefão, Apocalipse Now, Taxi Driver? Ou por que, em outros, os personagens femininos têm tão poucas falas, e quando falam, só falam de homens?” Eu respondia.

Um filme que focasse na relação de Elena com homens seria outro filme. Provavelmente ele começaria com o fato de ela ter sido abusada sexualmente aos 15 anos por um dos diretores de teatro mais renomados do Brasil. Na verdade, tentei contar essa história. Mas, na época, procurei mulheres que trabalharam com ele e todas se negaram a falar.

Não esgotei a questão do feminino em Elena, claro. Em seguida fiz Olmo e a Gaivota, que investigava o próximo rito de passagem de uma mulher, a gravidez. Durante o lançamento desse filme, quando a insurgência das ruas tinha se transformado em uma insurreição contra a presidente da República, não podia deixar de notar o machismo que permeava o debate. Os adesivos de Dilma de pernas abertas nos carros estampavam essa perversidade. Sua culminação foi no coro ofensivo na abertura da Copa do Mundo.

Não acho que seja coincidência que, dois anos depois, dos quatro documentários que estavam sendo filmados sobre o impeachment, três fossem dirigidos por mulheres: O Processo, de Maria Augusta Ramos, o filme ainda não lançado de Anna Muylaert, Lô Politi e Cesar Charlone, e o nosso. Éramos, de alguma forma, corpos estranhos no Congresso que, naquela legislatura, tinha menos mulheres que o parlamento da Arábia Saudita.

Muito mudou desde que fui para Brasília filmar. A cada nova primavera feminista, mais mulheres vestem o termo com orgulho. Mas ainda temos muitos espaços para ocupar. O cinema não é tão diferente da política.

Em 92 anos de existência, a Academia indicou 350 homens na categoria de melhor direção. Quantas mulheres? Cinco: Lina Wertmüller (Seven Beauties), Jane Campion (The Piano), Sofia Coppola (Lost in Translation), Kathryn Bigelow (The Hurt Locker) e Greta Gerwig (Lady Bird). Bigelow foi a única a levar o prêmio pra casa.

Em 2019, filmes importantes dirigidos por mulheres foram aclamados pela crítica e se confirmaram com sucesso de bilheteria. Destes, vários foram reconhecidos nas nomeações de 2020. Mas nenhum deles – de Atlantique, de Mati Diop (primeira diretora negra na competição oficial de Cannes e que infelizmente também não foi contemplado como melhor filme estrangeiro), a Little Women, de Greta Gerwig – foi reconhecido pela Academia como digno de ser nomeado por melhor direção.

Contrariando o movimento tardio porém notável, iniciado em 2016, de convidar mais mulheres, negros, latinos e asiáticos para integrar a Academia, o terreno da direção – o mais importante no que tange autoria e autoridade, pois atribui o sucesso de um filme à visão unificadora de um indivíduo – parece permanecer intocável e majoritariamente masculino.
Apesar disso, algo no terreno do documentário conseguiu ultrapassar este bloqueio. Dos cinco indicados, quatro têm mulheres na direção. O orgulho é ainda maior porque a equipe do Democracia em Vertigem com quem trabalhei mais proximamente também é majoritariamente feminina. Joanna Natasegara, Alice Lanari, Abigail Anketell e Mariana Oliva se empenharam na produção. Jordana Berg, Karen Harley e Tina Baz foram as principais montadoras. Carol Pires e Moara Passoni, no roteiro com a colaboração de Antonia Pellegrino e Daniela Capelato. E Mariana Melo e Karen Gronich foram minhas assistentes de direção. A equipe se tornou unida e amiga – por vezes família – também porque os homens que se juntaram a nós tinham ouvidos capazes de nos escutar, estavam dispostos a negociar suas visões e eram apoiadores de nossas causas. Fazer o filme foi por si só uma experiência política.

Como fala Paulo Freire, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Isso é nossa tarefa como mulher. Lutar para habitar nossos corpos, criar nossa própria voz. O abuso do corpo da mulher (que aumentou vertiginosamente desde a última eleição), o silenciamento de sua expressão, me parece reflexo de uma terra abusada. Uma terra que segue se desfazendo em lágrimas cada vez que é subtraída em tenebrosas transações. Até que consigamos regerminar essa terra abusada, para que ela se refaça por dentro, e frutifique.

(Fonte: Marie Claire, 5.2.2020)


Petra Costa em entrevista para a TV americana


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