Uma crônica bem atual de Ana Valéria Fink


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BARBARIDADE


*Ana Valéria Fink


Bah! Eu bem poderia iniciar esta crônica com outra interjeição, mais próxima de minha “bolha”, como Oxe, já que estou morando na Bahia, ou Putz, tão popular no Paraná, mas só cabe Bah!, mesmo. Porque é uma barbaridade o que a humanidade vem passando. Consequências... da barbárie humana.
Eu, que já sou, por natureza, afetuosa, depois que me “abaianei”, desaprendi totalmente a economizar demonstrações de carinho. Um “xêro”, aqui, que sempre fluía desenfreado, agora tem de ser, a pulso, reprimido. E isso tem causado muita tristeza nestes dias. A impossibilidade de externar os afetos fisicamente sinto como uma couraça que me afasta de meus iguais, me abster de tocar os por quem tenho carinho me melindra.
Enquanto ainda não estava praticando idealmente o confinamento, me deparei, na rua, com seu Geraldo, um idoso de meu agrado. Nossos encontros, que foram sempre celebrados com abraços calorosos, resumiu-se a um acenar de cabeças, e um olhar, dele, que poderia definir como amedrontado; o meu, se ele o notou, viu-o marejado. Na semana passada, quando ainda concordei com a vinda de minha diarista, mas, à sua chegada, lhe disse que era mais prudente que não nos abraçássemos como de costume, senti um desconforto tão grande, como se fosse eu a estar praticando ato de rejeição deliberado. Hoje, sendo ainda necessário dispensá-la (com a remuneração mantida, obviamente, que isto é um dever), foi a muito custo que a convenci a não vir. Disse-me que a entristecia por demais não podermos estar perto neste momento. E, ainda hoje, na minha última saidela de casa pra ultimar as providências que me permitam a quarentena, ao encontrar com meu grande amigo Tião (que não é baiano, mas mineiro, portanto igualmente “abraçador”), tivemos de nos conter e contentar com trocas de sorrisos, sem graça, doídos, lamentosos...
Estamos num momento de inversão inacreditável, onde cuidar é ficar longe, proteger é se afastar, amparar é distanciar, acolher é desaproximar. Só posso torcer, com todas as fatigadas forças, para que, quando tudo (oxalá!) serene, sejamos capazes de, além de saciar a falta dos abraços e apertos de mão, apreender o que a pandemia nos impõe: que não somos cada um só um, que cada ato, de cada um, respinga em todos, em cada criatura, e que cada um sozinho não vale é nadica de nada... Que, a partir da peste, o isolamento seja outro: que blindemos o planeta da funesta ganância humana.

***




*Ana Valéria Fink é poeta, cronista, contista. Autora de REGANDO OS JARDINS DO SENHOR E OUTRAS CRÔNICAS (Ibicaraí: Via Litterarum, 2015); A HISTÓRIA DE UMA BOCA (Recife: CEPE, 2015, infantil) e MOSAICO (Curitiba: Selo Coletivo Marianas, 2018, poemas)





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