Dois contos de Flávia Helena | "Amor não se joga fora" e "Terra Seca"

 

Paula Rego


Dois contos de Flávia Helena


Amor não se joga fora

 

Não que fosse possessiva, mas nunca se desfez de seus antigos amores.

Quem já se apaixonou uma vez deve saber muito bem: os amores invadem nossos corpos. Pelos poros, olhos, boca. Adentram em forma de suor, olhares, saliva. Quando são intensos, perfuram as veias, misturam-se ao sangue e se instalam no coração.

Como no dela sempre houve espaço, decidiu deixá-los quietos por lá mesmo depois que os romances se acabavam.

Até que conheceu Bernardo.

Ele, diferente dos outros, não precisou percorrer longos caminhos pelo corpo da moça. Foi logo na primeira noite que entrou direto pelo útero e rápido chegou ao coração.

Ocupou todo o espaço que havia, expulsando os amores que estavam guardados. Eram dois.

Ela menstruou na manhã seguinte, embora ainda não fosse o dia previsto.

Juntou em um potinho todo o sangue grosso que, durante sete dias, saiu de dentro dela. Diluiu tudo em água e deixou a mistura fervendo em um caldeirão.

Não precisou fazer mais nada. Depois de uma hora os dois amores já boiavam, como gordura, na superfície.

Com muito cuidado, separou um do outro com a escumadeira e colocou-os sobre um papel absorvente para que saísse o excesso de umidade.

Depois, comprou duas calcinhas, uma diferente da outra, que os amores nunca são iguais. Espalhou em cada uma a pasta correspondente a cada amor. Embaixo do forro de algodão. E deixou que secassem ao sol.

No coração, agora, só cabe o amor de Bernardo. Os outros, ela guarda em uma gaveta. 


Paula Rego

 Terra seca

 

Primeiro foi a pele ressecada e as rachaduras nas mãos. Não conseguia encontrar pomada ou creme que fizesse as feridas se fecharem.

Depois, vieram as tonturas. Um desmaio, até.

Acordou já no consultório médico, aonde foi levado sem querer.

— Stress. É o que tudo indica. Esse quadro de psoríase. As vertigens. Talvez fosse melhor um período de descanso.

O médico nem chegou a ver as veias enrijecidas. Empelotadas já. Como se algo estivesse empedrando por dentro.

Tudo começou quando ele conheceu Clarice.

Com medo de se apaixonar, encheu o coração de terra. Não daquela adubada, cheirando a húmus, mas algo que mais se parecia com um pó infecundo, onde nada poderia brotar.

A terra logo se espalhou pelo corpo, misturando-se ao sangue e circulando pelas veias. Ia seca, feito solo rachado pelo sol.

Ela bem que tentou. Irrigava o terreno árido com suor e saliva.

A tarefa não era fácil, mas Clarice gostava de banhar aqueles pelos eriçados. E tudo que se erguia na presença dela. Só que, com o tempo, começou a se machucar.

A secura do rapaz exalava pelos poros. Escapava em forma de areia junto ao suor, arranhando a pele da moça. Aos poucos, foi se misturando a todos os fluidos que saíam dele. Até que ela começou a sentir os arranhões no útero. A sangrar. E não aguentou.

Sem o orvalho de Clarice, a secura só fez aumentar.


Paula Rego

 

Flávia Helena é professora de Literatura. É bacharel em Direito pela PUC-SP, licenciada em Letras pela USP e mestre em Teoria Literária pela USP. É autora da peça TRAMA, contemplada com o ProAC 2013, da obra de crítica literária O fabricante de textos (Penalux, 2015), sobre o romance Budapeste de Chico Buarque, e da coletânea de contos Sem açúcar (Penalux, 2016), contemplada com o ProAC 2015. Tem contos e poemas publicados em diversas antologias. Faz parte do Coletivo Literário Martelinho de Ouro.



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