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Coluna 03

Apneia


Há muitos anos, fiz uma Oficina de Crônicas com Antônio Prata. Estávamos empolgadas com a oportunidade em um evento de um outro colégio, eu e uma colega de trabalho que se tornou grande amiga, dessas de verdade, que discordam, são parceiras, se afastam, se respeitam e se amam. É curioso voltar a ser aluna, mesmo que por algumas horas: a gente incorpora o personagem e apimenta com o olhar crítico, quase ácido da profissão. Tudo corria desafiadoramente bem, até que no momento de comentar os exercícios propostos, afinal era realmente uma oficina, Antônio me disse que eu escrevia bem, no entanto tinha material para umas vinte crônicas em um só parágrafo! Nem dava para respirar! Eu quero muito melhorar isso, Antônio. Mas continuo falhando. 

“Ponha o foco em um”. Um ano do primeiro caso de Covid19 registrado no Brasil, 26 de fevereiro de 2021. Tanto já foi dito, desdito e revisto sobre essa doença, o coronavírus e a pandemia que, como diz o nome, tomou conta do globo terrestre. Em um ano, pouco importa onde ocorreu primeiro. A cada vida perdida, a corrida contra o tempo se intensifica e se mostra mais injusta ante a falta de apoio do governo federal, pior, a negação de quem o encabeça e de seus seguidores, todos responsáveis pelo pior quadro mundial de saúde no cenário pandêmico. Mas eles dizem que a economia vai bem. Talvez eu que não entenda nada de economia. Poderia escrever mais sobre isso. Deveria focar nisso. 

Mas mal inspiro para tomar fôlego e as imagens do carnaval clandestino estarrecem. Multidões… aglomeração… máscara zero… cuidado zero… Álcool em fartura, não em gel… Nos morros onde a polícia não entra para não haver confronto e colocar o munícipe em insegurança. Nos morros onde a polícia não entra porque é mais lucrativo não entrar em confronto “com quem você pensa que está falando”. Falta de responsabilidade social, reflexo da ausência de responsabilidade política. Talvez eu que não entenda nada de política. O foco deveria estar apenas nisso.

Seguro o ar na pausa mais longa, na tentativa de entender a declaração do deputado que elogia a ditadura e "defende" o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Um deputado inconstitucional. Falou, gravou, postou. É detido. Faz cena de “otoridade” na recepção com a policial - mulher, óbvio - porque, coerentemente, não quer usar a máscara. É o mesmo parlamentar que, em 2018, foi gravado destruindo uma placa que homenageva Marielle Franco, vereadora assassinada em 14 de março de 2018. Ele não foi flagrado. Atuou com orgulho de seu feito contra a placa. São três anos sem resposta sobre quem mandou matar Marielle. Talvez eu que não entenda nada sobre justiça. Poderia escrever apenas sobre isso.

Expiro. É vacina contra o coronavírus em falta antes mesmo de dar conta do básico. É fase vermelha, roxa da quarentena, as piores, no “aniversário” de um ano da pandemia. São mais de 2000 mortes por dia no Brasil. São mais de 275 mil mortes por covid no Brasil desde o início da pandemia. Só no Brasil. Como focar, Antônio Prata, se tudo é um clarão de cegueira e perturbação atravessando peito, coração, pulmão sem cessar? Aquela minha amiga sabe que estou há semanas tentando escrever essa crônica. E o ponto final não chega


Plurais


Livros

Amores

Fotos

Tramas

Gentes.


Casas

Cidades

Desejos

Mares

Nós. 


Palavras

Causas

Provas

Alunos

Orações.


(Per)Cursos

Áfricas

Orixás

Ervas

Ares.


Medos

Dores

Pedras

Falas

Atos.


Listas.


(Morada, 2019, Editora Feminas)


Comentários

  1. Excelente texto, Catita. Estamos todas (em especial nós mulheres) e todos sendo asfixiados pela política do ódio. Sempre que uma mulher expressa isso sem medo, é um fôlego novo que tomamos, para prosseguir na luta. Obrigada!

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    Respostas
    1. Muito obrigada, querida! Seguimos juntas, lembrando uma a outra como respirar apesar do sufoco!

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  2. Excelente texto. O Mário Prata não tinha razão. Você é você. Obrigada pela maravilhosa crônica do mundo real.

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