UM CONTO DE MARIA AMÉLIA ELÓI | Projeto 8M

 

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Hoje, homenageamos a escritora MARIA AMÉLIA ELÓI, com seu conto inédito:

ORGULHO

Desta feita aflorou a necessidade. A mulher sentiu uma precisão genuína de romper. A angústia formigava sem parar, qual espinho de pequi engolido arranhando o céu do peito. Ela não tinha com quem dividir. Pensou em dizer ao padre, de joelhos no confessionário, mas não conseguiu. A reza não fluía nem quando ela se deitava à noite, sozinha com a imagem da Virgem Desatadora à cabeceira da cama.

Quem sabe se escrevesse?

Mãe do Céu, me ajude. Desculpe a chateação, mas sou devota e creio. Desta vez é uma reza estranha, mas bem franca. Aceite meu pedido sincero e fervoroso.

Lembrou-se do tempo da escola, quando ousava transformar os voos e as ideias (naquele tempo grafados com acento) em esperanças e arrebóis. A realidade lhe impôs outras urgências, que estorvaram seu traquejo na redação. Conversava com os clientes, vendia doce e queijo, mel e polvilho, mas lidando mais a granel. As palavras escritas careciam de mais delicadeza. Ela tinha de recuperar de novo em sua vida o poder daqueles símbolos. Precisava explicar o que via e sentia e principalmente desabafar aquilo que (bem que tentava mas) não entendia.

Se escrevo e espalho esta oração, é para pedir recurso. Pode entender como desabafo ou lamento ou apelo. Já vivi tanto, mas não sei mais o que é pecado. Nem sei se posso, se devo, se tenho o direito de pedir socorro nesta situação.

O momento era decisivo. Ela revisitaria os salamaleques dos verbos, o temperamento dos substantivos e a exigência das vírgulas. Havia muita coisa adormecida, mas deixaria jorrar a voz da mãe que sente mas não entende, a promessa da mãe que quer resolver.

E agora? Me orgulho porque minha filha confia em mim? Fico feliz porque ela me considera uma amiga de verdade e me conta os segredos mais íntimos? Coragem ela tem. Não posso negar. Mas eu precisava ficar sabendo dessas coisas agora, Santa Mãe de Deus?

Deixou fechada a barraquinha da feira. Ligou o computador da casa, abriu um arquivo novo e digitou. As aulas de datilografia não haviam sido em vão. As mãos perderam um pouco da agilidade, mas ainda sabiam bailar. O novo teclado não manteve o peso das teclas, mas estavam lá as mesmas fileiras de letras, a ordem do asdfg e o espaço amplo para os dedões. Era bom poder resgatar o ofício. A folha se encheu rápido, e aquilo foi o início do alívio que ela buscava.

É certo apoiar as escolhas dela, ficar de boa, sem repreender? Devo apresentar pra ela o filho mais moço da Marislei? Trancá-la em casa? Penso em confiscar todos os volumes do Heartstopper que ela ganhou de presente, fiscalizar as mensagens e bloquear as séries da Netflix, interferir nas amizades. Ela só tem 13 anos.

Não assinou o texto. Salvou o arquivo. Procurou uma gráfica rápida na QNL para imprimir dois milheiros daquela prece. O designer sugeriu uma folhinha pequena, de papel fino, como os santinhos mais comuns. “Vai precisar de frente e verso e letra miúda.” Ficaria bem reduzida a imagem de Maria, rodeada de grandes súplicas por todos os lados. Não teve tempo de se preocupar com a recepção. A dor, a vergonha, o susto, o nervoso — tudo era rajada espontânea, que ela não sabia frear.

Às vezes me pego agradecendo porque o pai desapareceu há um tempão. Era tão bruto aquele homem. Se ele soubesse, daria nela de cinta. Expulsaria a filha de casa. Sei que Jesus nunca lhe deu trabalho com essas preocupações — porque nunca se apaixonou por uma pessoa só, apenas pela humanidade inteira. Mas a Senhora intercede por mim, por nós, Rainha do Céu?

Distribuiu o santinho para quem quis e para quem não quis. Rodou aquela ladainha de mão em mão. A mensagem foi soprada por toda a L Norte e chegou até à Chaparral. Seu Rogério viu o papel no retrovisor do carro, resmungou e jogou fora. Dona Sandra pegou um em cima do balcão da padaria e levou pra casa. O professor Alcides guardou o panfleto para usar com os alunos numa aula de interpretação de texto. Catarina leu, ficou comovida e abraçou forte a mãe, que não entendeu nada.

A Luísa (sabe a Luisinha?) ainda não leu o folheto, o qual também dizia assim:

Nosso Senhor me deu uma menina perfeita, linda, inteligente. Usa vestido, maquiagem, é vaidosa, feminina. Mas a Senhora ouviu quando ela me disse que parece — quase certeza — que gosta de menina e de menino. Falou também numa tal de pansexualidade e defendeu aquela sigla com tanta letra e um + no final. Isso só existia no mundo lá fora, Santinha, e eu não fazia questão de entender. Eu, com a idade que ela tem hoje, nem sabia que existiam esses jeitos diferentes de gostar. E se ela virar lésbica de verdade, sapatão?! Não consigo nem repetir esses nomes feios. Se ela trouxer uma namorada em casa um dia, vou saber tratar bem a moça? É muito estranho, muito novo, Mãezinha. Eu não estava preparada pra ter genro. Imagine nora. Tão menina. Está confusa. Ajude ela a mudar de ideia, Nossa Senhora. Não sei se é justo pedir isso, mas cuide dos desejos da minha filha. Eu sonho com netos. Tenho irmão que é pastor evangélico. A madrinha dela é ministra da igreja. Vai chover julgamento desse povo. Vou poder comungar na missa? E ela? Essa menina vai sofrer? Não deixe, Consolação das Mães Aflitas. Que eu não atrapalhe em nada na felicidade dela, porque ela é minha única filha, o maior presente de Deus. Na minha devoção, no meu clamor, no meu desassossego sem palavras e sem rumo, eu não peço muita coisa, Mãezinha: faça minha menina feliz. Amém.

-*-

(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


MARIA AMÉLIA ELÓI nasceu em Taguatinga (DF) e vive em Águas Claras (DF). 

Há 17 anos é servidora da Câmara dos Deputados, onde desenvolve projetos culturais, como o programa de entrevistas 'Encontro com o Autor', a curadoria de exposições históricas, e a edição de catálogos e livros. Participa, com a família, do projeto de músicas infantis 'Turma do Caracol'.

Faz parte dos coletivos 'Lendo Contos', 'Mulherio das Letras' e 'Instituto Casa de Autores'. 

Possui contos, crônicas e poemas publicados em diversas revistas literárias, como 'Ser MulherArte', 'Gueto', 'Samizdat', 'Traços' e 'Ruído Manifesto'. 


Livros publicados: Um milagre para cada corcova (crônicas, Penalux/2015) e Primeira formatura (infantilNinho da Palavra/2021).

Participação em antologias: Novena para pecar em paz (contos, organização de Cinthia Kriemler, Penalux/2017). Organizou a obra Escritoras brasileiras (Edições Câmara, 2022), com artigos sobre a vida e a obra de 32 autoras. 



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