Minha Lavra do teu Livro 11 | "O PÁSSARO SECRETO", de MARILIA ARNAUD, por Nic Cardeal

 

Minha Lavra do teu Livro 11
- resenhas afetivas -


SEREMOS TODOS

 [SECRETAMENTE] 

PÁSSAROS ENCURRALADOS

ENTRE AS PAREDES DAS

NOSSAS GAIOLAS 

EMOCIONAIS?


Que pássaro é este
que me sacode em solavancos
que me aperta as entranhas
e me sufoca a garganta?
 
Que ave indecente
que me bica e regurgita
  que me grita entre as vértebras
que estraçalha minhas condutas
faz de conta que me escuta
e se demora em planejar vinganças
como se fosse meu dono
minha gaiola
meu abandono?
 
Que asas tão pontudas
capazes de furar
minha pele
minha sede
minha fome de doçura
e impedir minha libertação
das distâncias tão curtas
entre a loucura e a razão?
 
(por que você não voou
enquanto a liberdade
'inda te conhecia 
assim tão asas 
em horizontes distraídas?)
 
(Nic Cardeal, Segredo)


* Talvez exista um lugar de onde não se pode mais retornar, onde a vida não pode ser restituída. Talvez esse lugar seja aqui, onde estou agora, submersa na essência do silêncio, a entoar uma canção sem melodia nem palavras, livre do peso do meu próprio corpo, livre de mim mesma. (p. 9)

* Embora eu não pudesse ver nem tocar tudo aquilo, o mundo estendia-se até os confins da palavra. E carregada de significados, a palavra me contava o mundo, mesmo quando ele não era real. (p. 15)
 
* Como mães sentem o filho no ventre, eu sentia a Coisa em mim, nem um pouco gosmenta, tentacular ou repulsiva como os alienígenas dos filmes de ficção científica. Alada e espantosa, era da mesma matéria dos anjos, o que não quer dizer que eu fosse habitada por uma criatura de luz. (p. 23)
 
* Escrever era sempre uma forma de não deixar minha vida se desmanchar no ar. (p. 29)
 
* Não era possível que as pessoas escolhessem viver aprisionadas em suas obsessões e fraquezas. O amor não podia ser aquilo. (p. 59)
 
* Nunca mencionamos o passado e ainda assim ele continua pairando sobre nós como a sombra de um pássaro impossível. (p. 64)
 
* Leio poesia, onde encontro a palavra em seu estado mais puro. A poesia é um breve lampejo no mistério que envolve a existência. A poesia é um abandono. Deito-me em seu colo e me deixo acalentar. (p. 69)
 
* A vida me empurrou para a escuridão ou eu nasci com a escuridão dentro de mim? Enfim, somos o que carregamos em nossos genes, ou o que aprendemos a ser? (p. 92)

* Uma mão enfiou-se em minha garganta, forçando para baixo, para o coração encolhido, onde uma ave com patas de cavalo passarinhava loucamente, o ar escondido em algum lugar inacessível  (p. 154)

* O inferno não era um lugar. O inferno era eu.  (p. 178)

* Viver tornou-se a vertigem de andar em uma corda estendida sobre um precipício, os braços abertos, cuidando em não olhar para baixo. (p. 179)

(* Marilia Arnaud, in: "O pássaro secreto")

 
É possível um pássaro nos atravessar a alma, o peito, a garganta, arremeter-nos à beira de um precipício sem fundo, devolvendo-nos à ‘longa noite escura da alma’, sem aviso prévio e sem prazo para recuperarmos a razão de viver?

Terminei de ler há alguns dias O PÁSSARO SECRETO, de MARILIA ARNAUD (Rio de Janeiro: José Olympio, 2a. edição, 2022), e essa pergunta lateja feito um pássaro amedrontado e acuado dentro do meu peito. Ainda chocada, extasiada, sem ar nos pulmões, necessito de tempo para me recompor dessa viagem impressionante. 

Até que esteja refeita, vou relendo as partes em que a protagonista parece escrever em um diário (aqueles capítulos ímpares, digitados em itálico). É então que percebo que somente eles já seriam suficientes para uma leitura deveras profunda na alma da personagem principal desse romance – ela está hospitalizada, e anota diversas reflexões sobre seu estado emocional, embora sonolenta e desorientada em função dos medicamentos: 

"O destino dos pássaros não é o céu. O destino dos pássaros é o inferno, onde acabam por tombar, as asas partidas de escuridão" (p. 22);

"Tentei me lembrar de como as pessoas me chamavam, mas minha cabeça flutuava acima do corpo, como um balão perdido no espaço. Que importância podia ter meu nome? Eu só queria dormir para sempre" (p. 53); 

"Que não me venham pedir outra vez para eu falar de mim, do que me aconteceu ou de qualquer outra coisa. Como podem ser tão cruéis? Não veem a ferida aberta em que me tornei? Feridas abertas não falam. Feridas abertas sangram" (p. 107); 

"Por que as coisas se perdem de nós? Como se perdem sem que percebamos?" (p. 155); 

"Foi assim. Descuidei do estoque amoroso, e a minha vida ficou para trás" (p. 182); 

"Minha mãe  tirou-me o papelzinho das mãos e leu em voz alta: "Se escurecer, não lamente nem desanime; nada escurece mais do que a meia-noite." O primeiro segundo depois da meia-noite já é um novo dia. Quando esse novo dia chegará para mim? Chegará?" (p. 191). 

Depois disso, aumenta meu desejo por melhor compreender a protagonista e o sentido do título do livro, que achei tão bonito.  Folheio o romance várias vezes, releio muitas partes sublinhadas (confesso que nunca soube ler sem a interferência de um lápis ou caneta). E me preparo ao ritual da 'lavra sobre o livro'.

Abro na epígrafe, um poema da escritora argentina Alejandra Pizarnik: “Não sei sobre pássaros, / não conheço a história / do fogo. / Mas creio que a minha / solidão / deveria ter asas.” O pulsar do meu 'pássaro secreto' já começou aí. Então, instantaneamente senti que sim: é possível que neste exato momento, ele – o secreto pássaro – vez por outra, ou quase sempre, nos atravesse a sangrar o esquerdo do peito, e nos faça perder o fôlego, a razão, o equilíbrio. Eis a metáfora poética para um tema contundente e profundo, doloridamente humano.

Esse é um romance surpreendente, por isso mesmo vencedor do "Prêmio Kindle de Literatura". Nele, Marilia Arnaud cria uma personagem complexa: Aglaia Negromonte, uma mulher de 40 anos que, entre as anotações em seu diário, conta sua história a partir de lembranças da infância e da adolescência – sua fase mais dramática e difícil, quando os questionamentos sobre as relações familiares aumentam, quando sua fragilidade emocional é escancarada através de diversos sinais de socorro, sem, no entanto, ser percebida. Até que seja tarde demais, e a menina, perturbada e perturbadora,  acabe tomando atitudes inesperadas e drásticas, o que a leva a ser internada em uma clínica psiquiátrica. 

Aglaia nunca foi uma menina comum. De inteligência muito acima da média, solitária e extremamente sensível, complexada com o corpo acima do peso e com distúrbios alimentares, a adolescente de entrega à paixão pelos livros, pois é através da literatura que procura se aproximar do pai – um leitor voraz, ator e dramaturgo reconhecido, que, embora distante e autocentrado, é um elemento de peso nas relações e conflitos familiares. 

Ao iniciar seus relatos, já adulta, Aglaia registra:
 
"A vida tem tanta força, que flores brotam em jardins de cimento. Para mim, todavia, a morte começou muito cedo. Antes que o tempo perdesse a aura de infinidade que maquia a juventude, eu não tinha mais nenhum caminho por onde seguir. Não me foi dada a chance de outra vida. E, se minha avó Sarita estivesse aqui, ela me olharia muito séria e diria: "Como Deus faz falta, Marrã! (...)" (p. 10).

O conflito central do romance é a descoberta de um segredo, quando Aglaia, sua mãe Luísa, e seus irmãos Heitor e Eufrosine, são surpreendidos por uma revelação feita pelo pai, Heleno. Qual seria esse segredo, capaz de virar uma vida de pernas para o ar (ou para o abismo existencial)? Para a adolescente, o pior deles: a descoberta de uma meia-irmã, filha de um caso entre seu pai e uma atriz francesa  Thalie, uma jovem quase de sua idade que, após perder a mãe e a avó e, sem outros parentes, é destinada a morar com a família paterna, e que lhe arranca um 'espaço' todo seu diante do pai, a atenção e o carinho da avó Sarita, e o 'utópico namorado' de adolescência, o primo Demian. Sim, a linda e doce Thalie, que lhe desperta das entranhas a tal "Coisa" – o 'pássaro secreto', e este passa a perturbar seu juízo, sua razão, estraçalhando seus sentimentos e emoções, rasga-lhe a alma, e a transforma na 'pior parte' de si, tornando-a uma adolescente cada vez mais frágil, desconcertante, raivosa e vingativa. Mas o pássaro que a habita não é um  simples pássaro: trata-se de um pássaro raro, talvez uma ave de rapina. E ele já estava lá, debatendo-se dentro dela, muito antes do surgimento inesperado da nova irmã. E poderia ser outra coisa essa "Coisa" que lhe atormenta a 'longa noite escura da alma' e que, aos 'olhos de dentro' de Aglaia, parece-se com um pássaro? Não há dúvida que sim, pois logo se percebe que a intenção da autora é tratar, por meio da metáfora da ave, das emoções contraditórias, das angústias que tomam conta da adolescente, especialmente quando há uma história de abandono afetivo no lar, de solidão, de grande sensibilidade e extrema fragilidade emocional. A autora cria uma protagonista inadequada em relação ao mundo, com imensa dificuldade de autoaceitação, atolada em suas próprias insuficiências perante as relações sociais, que se denomina 'deformada' por se sentir incapaz para a 'normalidade', e que encontra refúgio apenas nos livros, nas músicas e filmes, no amor da avó e no convívio com o primo Demian.
 
Aglaia se sente amargurada no ambiente familiar, vê-se diante de um pai ausente e egoísta, e de uma mãe submissa e anulada pelo marido, a professora universitária que sustenta financeiramente a família e que aceita sem discussão a estrutura familiar patriarcal que lhe é imposta. E isso só piora quando o pai revela a existência da quarta filha. Evidentemente que a jovem Aglaia se revolta:

"(...) Poderia começar contando de quando eu tinha treze anos e uma garota despencou em minha vida, abrindo o paraquedas e o sorriso de capa de revista no meio da nossa sala. Essa garota pegou minha vida e saiu com ela por aí, sacudindo-a de um lado para o outro, como um gato carrega um rato pendurado à boca, sem ansiedade em acabar com sua presa. Não se esquece de algo assim. Explodiu minha vida sem nenhum esforço. Apenas por existir e ser ela mesma, mandou-me pelos ares. E, a despeito das circunstâncias em que surgiu, tentaram me convencer de que eu deveria amá-la. (...)" (p. 24).

Os irmãos de Aglaia não demoram a assimilar a novidade e cair de encantos pela nova irmã. Mas ela não pode compreender, nem aceitar que o pai tenha feito isso com a mãe e com os filhos. Diante de seu inconformismo, sente seu 'pássaro secreto' gritar, espernear, até explodir de indignação e raiva, destroçando seu já frágil e tão tênue equilíbrio psíquico. Então, a protagonista (assim como o pai, apaixonada pela obra de Shakespeare), encaminha a vida em direção à tragédia. 

De fato, é um livro que nos atormenta, ao mesmo tempo que nos aguça a curiosidade sobre o destino psicológico de Aglaia: dilacerada pelo ciúme de Thalie e por se sentir rejeitada por quase todos, estará ela destinada ao sofrimento causado pelo inconformismo e pela revolta, pelo desejo de  vingança, ao ver que todos passam a gostar de Thalie? Quem a entenderá, se nem sua avó Sarita mostrou-se capaz, depois do surgimento de Thalie?

"(...) Meu coração congelou e parou de bater. Eu morrera? Thalie dava umas risadinhas contidas, de surpresa e prazer, e tapava e destapava os olhos com as mãos, como se não pudesse acreditar no que via, como se precisasse se assegurar de que não sonhava. Eu tragava o ar, que não vinha, não vinha. Pensei que fosse desmoronar ali mesmo, se aquela pantomima não acabasse logo. (...) Aquilo era amor? Como era possível amar o que não se conhecia? Deveria lhe perguntar, mas me mantive em silêncio. Naquele momento, minha voz soaria vacilante, e ela provavelmente não me ouviria, e eu acabaria explodindo em lágrimas. (...)" (pp. 119-120).

O protagonismo do romance de Marilia está inteiramente focado em Aglaia, por isso toda a dor da adolescente é escancarada ao leitor, sem subterfúgios ou panos quentes. Totalmente dominada pela "Coisa" (a entidade 'materializada' na imaginação de Aglaia como um pássaro, que representa suas angústias existenciais), a jovem toma atitudes impactantes e violentas para atingir a meia-irmã, de modo que acaba por ser internada em uma clínica psiquiátrica.

É necessário que leiamos e releiamos 'O pássaro secreto', até desvendá-lo por inteiro no coração e na alma de Aglaia, no coração e na alma de cada um de nós, leitores de Marilia. Porque sim, “A Coisa” também está em nós, bicando-nos o tempo todo, avisando-nos de que precisamos estar atentos aos seus voos repentinos ou solavancos traiçoeiros, pois, assim como Aglaia, todos somos feitos de 'longas noites escuras' – nossas sombras do coração, nossas fragilidades psíquicas, nossas obsessões – que necessitam ser iluminadas, decifradas, compreendidas, aceitas e transformadas.

Nem todo livro é escrito para ter um final feliz. Melhor aquele que desperta em nós a urgência por compreensão das nossas maiores (e mais densas) profundezas – ainda que seja necessário o mergulho do 'pássaro secreto' nessas águas tão escuras. Porque todo mergulho é  dotado da esperança pelo retorno à superfície: fênix rara ressurgida das cinzas – nossa melhor humanidade! 

(Nic Cardeal)

capa do livro O pássaro secreto 


Um capítulo do livro O pássaro secreto:

"vinte e um

Deveria existir uma lei dispondo sobre o amor para todos, com igualdade de forma e quantidade. Acho que isso facilitaria a vida das pessoas, embora às vezes o amor me pareça uma coisa bem idiota. Uma canção que minha mãe gosta de cantarolar fala que "o amor é azulzinho". Vovó Sarita me disse que o amor pode escurecer até o mais profundo breu e, ainda assim, continuar sendo amor. Difícil acreditar que o amor amanhece e anoitece, tem um lado direito e um avesso, duas faces de uma mesma moeda, um rosto bonito que pode se deformar de uma hora para a outra. Impossível compreender esse amor que, como a lua, cresce, míngua e torna a crescer.

Descobri que é preciso estocar no coração uma porção generosa de amor azul, fazer uma reserva para tempos de amor sombrio, de amor que machuca, enlouquece e mata. Como os esquimós fazem com a gordura para não morrer de frio. Um dia, não se sabe quando, assim quase de repente, você pode se ver sem ninguém que o ame. Se fez o estoque direitinho, vai sobreviver. O mais certo é que não existe garantia para o amor, nem para o amor azulzinho da canção nem para o amor azul-escuro, quase preto, o amor feroz."

(p. 164)


fotografia do arquivo pessoal da autora 


MARÍLIA ARNAUD é natural de Campina Grande, e reside em João Pessoa, na Paraíba. É graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Trabalha no Tribunal Regional do Trabalho da 13a. Região.

Participação em coletâneas e antologias: Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato, Record, 2005); Contos cruéis — as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea (org. Rinaldo de Fernandes, Geração Editorial, 2006).

Livros publicados: A menina do Cipango (contos, Prêmio José Vieira de Melo, Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba, 1994); Os campos noturnos do coração (contos, Prêmio Novos Autores Paraibanos, UFPB, 1997); O livro dos afetos (contos, 7 Letras, 2005); Suíte de silêncios (romance, Rocco, 2012); Salomão, o elefante (infantil, Selo Off Flip, 2013);  Liturgia do fim (romance, Tordesilhas/2016); O pássaro secreto (romance, Amazon Brasil, KDP, Prêmio Kindle de Literatura 5a. Edição, 2021).








Comentários

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

A POESIA FANTÁSTICA DE ROSEANA MURRAY | PROJETO 8M

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Cinco poemas de Eva Potiguar | Uma poética de raízes imersas

Preta em Traje Branco | Cordel reconta: Antonieta de Barros de Joyce Dias

UM TRECHO DO LIVRO "NEM TÃO SOZINHOS ASSIM...", DE ANGELA CARNEIRO | Projeto 8M

Resenha 'afetiva' do livro O VOO DA GUARÁ VERMELHA, de Maria Valéria Rezende

Uma resenha de Vanessa Ratton | "Caminho para ver estrelas": leitura necessária para a juventude