A POESIA CONTUNDENTE DE MARCIA FRIGGI | Projeto 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 


8M

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Leia a poesia incrivelmente contundente de MARCIA FRIGGI:


A ÚLTIMA LÁGRIMA

Acomodou-se à condição de concha
Entre as frestas que ainda havia
Seixou escorrer - lâmina de dor e parto -
em pérola  líquida- a última lágrima

(* poema do livro Lâmina, p. 15)

-*-

imagem do Pinterest 

FATAL

Um calendário esquecido 
sobre o criado-mudo
que não sabe se hoje
ou há trinta anos
Um esqueleto esquartejado 
pelo silêncio 
dorme sob a cama
A luz de um vaga-lume
colado às tuas pálpebras 
A fosforescência de uma lágrima 
pregada entre fronhas
Mãos trêmulas, tateias
em busca de uma gota de claridade 
de um cálice de delírio 
uma dose que seja de epifania
e as reconheces
fatalmente perdidas
Como nunca ontem
Como nunca antes
Como nunca mais

(* poema do livro Lâmina, p. 27)

-*-

imagem do Pinterest 


TESTAMENTO 

Estou partida - Deixo:
... A poeira das horas
Um cotidiano enfurecido 
O peso dos prazos 
Um fio de vontade
Do outono eterno - as chaves
... O riso parco
O passo apressado
mãos operárias 
A voz tom pastel
Dos olhos insones - As pupilas douradas
Entrego também - E ninguém há de querer
... A angústia e seus tentáculos
Alergias crônicas 
nervo exposto
Duas fobias
E sempre a mesma nota ao pé da página 1


1. Exija Habeas corpus e vida - Mais nada!

(* poema do livro Lâmina, p. 43)

-*-

imagem do Google 


RASCANTE

Hoje, sangram em mim
todas as crianças sírias
A dor dos pais é um urro
e rasga os tímpanos 
do mundo-mudo
Hoje, nenhuma poesia salva
Não há metáfora-consolo
para a guerra
Hoje, só o verbo vivo
a voz-combate
o verso-denúncia
Hoje, ardem em mim
todas as feridas 
das crianças sírias
atônitas, órfãs, mutiladas
Hoje, eu quero um poema potente
Uma estrofe-decreto
Um verso-antichamas
Um ritmo binário rascante
Que paralise esse monstro
nutrido pelo sangue negro
da terra

(* poema do livro Lâmina, pp. 57-59)

-*-

imagem do Google 


PLENA

Em memória de Marielle Franco

Plena - em pleno voo


O punho projétil alcança a ave
Abatida, tombas
Soam tambores, soluços, sinos
A Maré avolumada
encolhe-se na vazante
Submersos, ardemos
no mesmo medo
da mesma morte

na mesma ânsia 
- estancar sangradouros da vida...


plena - em pleno voo

(* poema do livro Lâmina, p. 83)

-*-

imagem do Google 


PORTO

Não há terra à vista 


Há esta manhã
e sua fratura exposta
e dias intensos
em carne viva


Milhas distante
de qualquer futuro 
diante de um passado
arquitetado em muro


O caos é servido à larga
em cálices de ódio 
salvas de covardia
e cinismo sádico 


Resistir em pé 
Não soltar a mão de ninguém 
diante do naufrágio certo
nos queremos perto
e porto em mar aberto

(Brasil - janeiro 2019)

(* poema do livro Lâmina, pp. 105-107)

-*-


capa do livro Lâmina 


Sobre o livro LÂMINA:


Porque a mesma lâmina que sangra a vida também afia a língua para a palavra de resistência 

(por Nic Cardeal)

Com LÂMINA (Curitiba: Kotter Editorial, 2019), Marcia Friggi escreve poemas-filhos, poemas-pais, poemas-respiros, poemas-coragem. Nada é em vão,  tampouco aleatório, ainda que haja necessidade de longas esperas, de dores costuradas a sangue, suor e lágrimas. Porque Marcia navega por águas profundas, sabe caminhar em águas rasas, ouve ligeiro o aviso de um coração guerreiro. Entende os sinais dos tempos, e então escreve, com a precisão de quem fotografa a realidade com palavras. Exatas palavras - como quem aponta a flecha e atinge o alvo - no esquerdo do peito.

Nos poemas que consagram a existência ("ao que nos consagra"), Marcia trabalha desde o sol, a chuva, a rosa, até a borboleta, que pousa morna e lenta sobre a pétala. Segue a burilar a vida na lágrima, em luas, na mãe e no filho, no amor latente desde o primeiro berço - memórias que vêm e que vão, milenares sentidos de aglutinação grupal - a  casa (de dentro e de fora), a aldeia, a terra, o todo, o tempo, sempre o tempo, reconhecido "como nunca ontem / como nunca antes / como nunca mais". A autora mergulha em si, no outro, no voo de ambos, para dizer sobre o amor, sobre a necessidade do amor para depois de dois, para todos os milhares, apesar das intempéries que ecoam, em críticas silentes, "sobre a angústia pontual / de homens lobos". Consagrada existência que prossegue na memória das mãos, no testamento insone, escrito, por certo, com "o passo apressado / mãos operárias / a voz tom pastel". Até que seja o homem - nós, todos nós - outra vez pássaro! Sim, consagrada a existência que permite à carne percorrer o caminho ao voo, no trajeto insistente da vida que pulsa, lateja, sangra, alegra, consagra o instante - e segue para o destino final, depois dos nossos - todos - horizontes.

Nos poemas que consagram a resistência ("ao que nos esmaga"), a autora rasga, à lâmina, a palavra no fio da esperança! Porque é preciso resistir,  sobreviver, viver,  apesar de. Porque, por mais que se faça poesia, há dias em que, "hoje, nenhuma poesia salva / não há metáfora-consolo / para a guerra / hoje, só o verbo vivo / a voz-combate / o verso-denúncia". Sim, porque é preciso querer ficar, aprender, lutar, ensinar, apesar dos tempos amargos, da realidade sombria, de uma civilização de 'fraturas expostas'.

Sim. É preciso coragem no poema nosso de cada dia, há que nos salvar a poesia, a nos fazer sobreviventes da misoginia, do ódio, dos vermes, do sangue qu'inda ousa sangrar por balas pe(r)didas! Porque há de haver, n'algum novo tempo (e lugar), a hora exata na estrada certa, para reerguermos a dama, o rei, peões reunidos - o povo -, depois da queda de todo esse engodo! Porque é preciso retirar os coturnos, andar sobre a relva, pés descalços de amor!

Porque a mesma LÂMINA que sangra a vida também afia a língua para a palavra de resistência! 

Ave, lâmina!

-*-

(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


MARCIA FRIGGI é graduada em Letras e especialista em Linguística. É professora de Português e Literatura na rede estadual de Santa Catarina.Também é artesã e poeta. Participa, como autora, dos movimentos 'Senhoras Obscenas' e ' Mulherio das Letras'.

Em 2019 lançou seu primeiro livro de poesia, Lâmina (Kotter Editorial).


Comentários

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

DUAS CRÔNICAS E CINCO POEMAS DE VIOLANTE SARAMAGO MATOS | dos livros "DE MEMÓRIAS NOS FAZEMOS " e "CONVERSAS DE FIM DE RUA"

Cinco poemas de Catita | "Minha árvore é baobá rainha da savana"

A POESIA PULSANTE DE LIANA TIMM | PROJETO 8M

A vendedora de balas - Conto

Preta em Traje Branco | Cordel reconta: Antonieta de Barros de Joyce Dias

Poema da poeta italiana Francesca Gallello