Minha Lavra do teu Livro 03 | "INVISÍVEIS OLHOS VIOLETA", de ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA, por Nic Cardeal

 


Minha Lavra do teu Livro 03
- resenhas afetivas -
 

A INVISIBILIDADE

 FEMININA

NA VELHICE 


Na realidade, não faz diferença,
jovem, velha, quem se lembra,
lá bem fundo,
lá no alto,
faz tempo que me tenho por inteiro.
Reflexos?
Só no espelho.
Deixem-me ficar velha.
 
(Nic Cardeal, in: Reflexos, ‘Sede de céu’)

 

Em INVISÍVEIS OLHOS VIOLETA (Rio de Janeiro/RJ: Ventania Editorial, 2022), ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA trata de um tema muito importante nesses tempos de relações tão líquidas, ou já quase gasosas: em um romance realista, traz à pauta a necessidade de refletirmos não somente sobre as verdadeiras razões das dificuldades amorosas enfrentadas pelas mulheres da terceira idade, como também sobre meios de modificar, ou mesmo aceitar, de maneira  mais tranquila, essa realidade. De acordo com a escritora, “a partir dos 50 as mulheres vão ficando invisíveis e eu quis explorar esse assunto” (em artigo de Letícia Perdição, para a coluna ‘Entretenimento’, do site ‘Metrópoles’ – https://www.metropoles.com, de 15.06.2022). E essa invisibilidade é acentuadamente percebida nas relações heterossexuais.

A narrativa ocorre sempre na terceira pessoa, e tem como protagonista uma mulher de quase 70 anos, Cibele, que logo no início da obra questiona acerca da denominação ‘terceira idade’, tema que tem estado constantemente em discussão, tanto nas redes sociais quanto na vida real: “(...) Cibele releu, pela quinta vez, as mensagens trocadas com Pedro. Tudo começou quando ela resolveu entrar num site de relacionamentos destinado ao público da terceira idade, expressão que detesta, mas contra a qual aprendeu a não lutar mais. Prefere o substantivo velhice, curto, significativo, redondo, pesado e leve, de três sílabas que nomeiam uma enorme quantidade de problemas e vantagens, embora estas últimas em menor número, envolvendo como uma pele uma extensa lista de conquistas, realizações, preconceitos, inseguranças, dores físicas e emocionais, e doenças crônicas (...)” (p. 13).

A advogada bem sucedida Cibele, depois de um período difícil de depressão em razão de um divórcio, resolve finalmente sair em busca de um novo relacionamento afetivo que seja duradouro, saudável, e não de meros encontros casuais cuja finalidade seja apenas sexo.

Além de Cibele, o ex-marido e arquiteto Gil, do qual é divorciada após um casamento de 25 anos, e o filho único Ernesto, outros personagens também fazem parte da trama. Como, por exemplo, sua mãe Maria, proprietária de uma confeitaria, abandonada pelo marido quando a única filha ainda era criança, e que foi morar na Escócia pois se apaixonara por uma mulher de Edimburgo. Janaína, tia de Cibele, que parece carregar uma grande culpa familiar vida afora. Selma, esposa de Ernesto, misteriosa quanto ao seu passado e à maneira estranha com que trata a filha, Mirena. Vanessa, a taróloga e amiga de infância; a jovem Mabel, segunda esposa de Gil; Luzia, a melhor amiga de Cibele, mulher independente, leal, curiosa, divertida, muitas vezes debochada, e que jamais revela a verdadeira idade.

 

Cibele, sempre em busca de seu 'par ideal', conhece – muitas vezes apenas virtualmente  homens de diversos estilos e profissões, como o misterioso advogado aposentado, divorciado e pai de uma adolescente com necessidades especiais; o crush que conheceu em uma livraria; o pintor com quem se envolveu rapidamente depois do divórcio; o militar apaixonado por literatura; o representante comercial de suplementos alimentares que não gosta de mulheres e só se inscreveu no site para vender seus produtos; o proprietário de uma fazenda e que se denomina 'sertanejo'; o 'Dom Juan' provinciano, suposto neto e filho de joalheiro; um de seus primeiros namorados da adolescência, que volta a encontrá-la depois de ambos já descasados; o advogado criminalista; o campeão de xadrez; o divorciado 'boa-pinta', cliente do escritório de advocacia onde Cibele fez seu primeiro estágio; o médico veterinário; o industrial reacionário; ou o alto e ruivo (e suposto) professor de Filosofia! Enfim, a protagonista, com muito bom-humor e, outras vezes, com boas doses de ingenuidade, descreve suas tentativas de engrenar relacionamentos duradouros com esses homens, descobertos a partir de sites de relacionamento. Mas Cibele, diferente de grande parte das mulheres, não considera responsabilidade única dos homens os seus inúmeros 'desencontros' ou 'desacertos' nas relações amorosas, pois reconhece a complexidade do assunto. Para ela, “(...) a questão não é o sexo, disso ela está segura. Se fosse somente sexo, tudo seria resolvido de maneira muito mais fácil. (...) Nós, mulheres, estamos perdidas, conclui. Enquanto não aprendermos que só um bom ímpar pode ser um bom par – expressão que ouviu de conhecida e respeitada taróloga – é impossível sairmos dessa arapuca. Com tantos “ímpares” – nós e eles – tendo a sensação de incompletude e miserabilidade, como se faltasse um órgão no corpo, as chances desse tão almejado encontro são muito pequenas. (...)” (p. 86). Todos esses relatos são entremeados por suas memórias da infância, da juventude, e do período em que esteve casada com Gil e trabalhava como advogada em um escritório de advocacia.

Há três 'mistérios', se assim posso dizer, a serem destrinchados no romance, e que instigam a curiosidade dos leitores (assim foi comigo!): dois deles, de certo modo suaves – um, relacionado ao título do livro (aliás, muito bonito!), e que se arremata no último capítulo; o outro, diz respeito à tia de Cibele, Janaína –; e o terceiro, gravíssimo (muito comum nas relações familiares de todos os tempos, e que somente na atualidade está sendo tratado com um pouco mais de rigor e justiça, embora ainda precários), refere-se a um dos pretendentes virtuais de Cibele, e que se revela quase ao final do romance, com a descoberta feita por sua nora, Selma. Sobre este, e para atiçar o desejo por conhecer o livro, não direi mais nada, apenas o que escreve a autora sobre a curiosidade da personagem Cibele, tão comum em típicos e experientes advogados investigativos: “(...) não sabe exatamente o que espera encontrar, mas intui que pode haver algo escrito por Selma que possa conter alguma informação nova. Uma frase, uma palavra que seja, provavelmente ajudaria os médicos que cuidam da nora. Com seu dom para a investigação, revista minuciosamente debaixo dos colchões e os espaços entre paredes e armários. (...)” (p. 112).

Não há como deixar de registrar, ainda, a meu ver, a passagem mais comovente do livro – que se refere à lembrança de Cibele do dia em que seu pai vai embora, abandonando mãe e filha:

“(...) Finalmente o sol saiu, levando embora a friagem da noite. A menina fazia véspera para sair do esconderijo, pois detestava brigas e ficava muito aflita com discussões e vozes altas. Por fim se decidiu, movida pela fome, e foi se arrastando devagarzinho, evitando ser vista. Como era muito pequena – teria sete ou oito anos, talvez – passava despercebida em meio aos arbustos. Alcançou o cipreste, muito próximo à entrada da casa, mas se sentou de novo, ao perceber que o barulho tinha acabado. E agora?, perguntou-se.


Para quem visse de fora, a figura não pareceria uma menina e sim um bichinho assustado e encolhido. Os minutos passavam e tudo parecia igual, ela sem saber se entrava ou não na casa. Por fim, resolveu dar a volta por trás. E então viu o pai alcançando a porta da rua, carregando uma grande mala xadrez. Sentiu vontade de correr até ele, abraçá-lo, perguntar para onde estava indo, mas ficou quieta, com a impressão de que tudo tinha ficado subitamente escuro e o sol se fora para sempre. Então era isso, pensou. O pai não se lembrou dela, não se despediu, saiu de casa como um estranho, um homem qualquer com uma mala xadrez. O seu pai. Sentiu que não voltaria nunca mais a morar com elas. Será que estava indo viver com a tal mulher mencionada pela mãe?


A fome desapareceu de repente, só queria dormir. Caminhou até a horta e se deitou debaixo do pé de flamboaiã, recebendo os raios fortes do sol que invadiam os galhos repletos de flores vermelhas. E agora? O seu pai. A mala. Sem um abraço, um adeus, um até logo. Nada. Só o azul e branco do xadrez, que sabia eterno na memória, inventariado para sempre. (...)” (pp. 44-45).


Enfim, o tema da invisibilidade feminina na velhice é necessário e sempre atual, uma vez que vivemos em um país, e muito provavelmente em um mundo, onde o machismo estrutural reina praticamente absoluto. E onde, infelizmente, a mulher continua sendo vista por 'olhos coletivos' de sociedades que perpetuam e dão sustentação à dominação patriarcal e, no qual, a velhice feminina prossegue sendo tratada com desdém, menosprezo, e praticamente desqualificada (principalmente no que se refere à sexualidade), mesmo diante do presente contexto da realidade humana: o de que a longevidade das mulheres tem sido muito maior em comparação com a  dos homens, embora sempre estigmatizada. Sim, há dados estatísticos demonstrando que as mulheres têm vivido, em média, de sete a nove anos a mais que os homens! De qualquer modo, independente de sexo ou gênero, o fato é que a velhice chega para todos os que conseguem manter-se vivos após os sessenta e, bem sabemos, como acertadamente diz a autora, que: “(...) todos caminham como podem, tropeçando, caindo, se levantando algumas vezes e outras não, e o percurso destinado a cada um é enredado demais e o tempo curto. Não há como retroceder, treinar, fazer de novo, saltar obstáculos, pegar atalhos. O barqueiro não dorme no ponto e a travessia é rápida como o lendário Sputnik. Num abrir e fechar de olhos chega-se à outra margem do rio. (...)” (p. 74).

(Nic Cardeal)

capa do livro Invisíveis olhos violeta



Dois pequenos excertos do Prefácio de Invisíveis olhos violeta:

(por Eurídice Figueiredo)


"(...)

Seus romances abrem janelas para entendermos as relações humanas, em especial as relações familiares; às vezes não são janelas, são frestas estreitas que exigem maior concentração e perspicácia no ato da leitura para atentarmos às nuances nos conflitos apresentados. O foco narrativo se dá através do olhar de suas personagens femininas, mesmo quando escrito na terceira pessoa, como é o caso deste romance.

(...)

Creio poder dizer que o grande tema que atravessa sua obra é o amor, porque as mulheres parecem estar sempre buscando-o. Neste novo romance, uma das personagens fala sobre a insistência feminina em dar prioridade ao amor, o que lhe parece estranho, pois, apesar da independência profissional e financeira, as mulheres continuam dependentes dos homens. No afã de conquistar um parceiro, elas acabam caindo nas mãos de sedutores narcisistas e manipuladores, que não merecem tamanha devoção; ao serem abandonadas, entram em depressão, como em 'Nenhum espelho reflete seu rosto'.


(...)"

(pp. 8-9)

fotografia do arquivo pessoal da autora 


ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA é escritora, jornalista, graduada em Comunicação, habilitação Jornalismo, pela FAC/UnB, e em Direito pela PUC - Salvador/BA. Cursou mestrado em Comunicação Social pela ECA/USP. É professora  aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da UnB. Tem textos avulsos premiados, como a crônica 'Um homem indelicado', que obteve Menção Honrosa no 'VII Concurso Rubem Braga de Crônicas', promovido pela Academia Cachoeirense de Letras. Foi colunista das revistas literárias digitais Verbo21 e Germina. Atualmente, tem coluna na revista cultural digital Flor de Dendê. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017. 

Livros publicados: Véspera de lua (romance, vencedor de vários prêmios, entre eles o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG/1988 - Belo Horizonte/MG: Editora da UFMG, 1990, e Guaratinguetá/SP: Penalux, 2015, 2a. edição); Rio das pedras (novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, classificada entre os dez finalistas da 4a. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira - Brasília/DF: Secretaria de Estado de Cultura, 2002); Pupilas ovais (contos, Brasília/DF: LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF); Fome de rosas (romance, FAC/Secretaria de Estado da Cultura do DF: Edições Dédalo, 2009); O indizível sentido do amor (romance, São Paulo/SP: Patuá, 2017); Nenhum espelho reflete seu rosto (romance, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2019); O coração pensa constantemente (romance, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2020) e Invisíveis olhos violeta (romance, e-book: Amazon, 2021, Rio de  Janeiro/RJ: Ventania Editorial, 2022). Também publicou sete livros infantojuvenis: A festa de Tati (Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2008, 2a. ed. 2011); Dias de santos e heróis (São Paulo/SP: Prumo, 2009); Três contra um (Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2011 e 2015); Nem tudo foi carnaval (Belo Horizonte/MG: Editora RHJ, 2012); Janaína, a bailarina (Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2012 e 2015); O macuco Felício (São Paulo/SP: Editora Cortez, 2014); e O vestido da condessa (Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2014).

Participação em antologias e coletâneas: Antologia de Poetas de Brasília (coord. editorial Christina Oiticica, DF: Shogun Editora e Arte Ltda., 1985); Dicionário de Escritores de Brasília (org. Napoleão Valadares, 2ª e 3ª edições 2003 e 2012); Antologia do Conto Brasiliense (org. Ronaldo Cagiano, Brasília/DF: Projeto Editorial/Livraria Suspensa, 2004); Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato, São Paulo/SP: Editora Record, 2005); História da Literatura Brasiliense (org. Luiz Carlos Guimarães da Costa, Brasília/DF: Thesaurus, 2005); Todas as gerações - o conto brasiliense contemporâneo (org. Ronaldo Cagiano, São Paulo/SP: LGE Editora, 2006); 7º Prêmio Escriba de Contos (Piracicaba/SP: Secretaria Municipal de Ação Cultural, 2009); Balões Coloridos - Crônicas (Porto Seguro/BA: Editora Via Literária, 2010); Mulheres - Prosa de ficção no Brasil 1964-2010 (org. Marcia Cavendish Wanderley, Rio de Janeiro/RJ: Ibis Libris/FAPERJ, 2011); Dicionário de Mulheres (org. Hilda Agnes Hübner Flores, Florianópolis/SC: Editora Mulheres, 2011); Novena para pecar em paz (contos, org. Cinthia Kriemler, Guaratinguetá/SP: Penalux, 2017); entre outras.     
 
 
 

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