Gelo e fogo se abraçam na instigante Poesia de Michelle Ferret, em seis Poemas


Wendell Well

FRIO

O dia escureceu os meus olhos
Não tinha mais fogo para acendê-los Todos os fósforos foram usados
Não sobrou nada
Procurei pelos isqueiros Mas eles não tinham gás
                      Nenhum incêndio foi possível hoje

Verônica Trigo Arte

DEPOIS

Abro demoradamente
porta por porta
de todas as gaiolas
e desafio a gravidade
atravessada de silêncio
avisto
outro país, outro planeta
este, agora
em esperas
mesmo depois de tantas (v)idas
Todo parto tem seu peso
e todo tempo
sua vertigem
imersos na coragem
da criança que pula
o abismo de todas as manhãs
seguimos
Todos os versos
são planos de fuga
despedida do corpo em riste
alucinando as vias públicas, ora vazias
asfaltadas no peito
O inferno de Dante
é pouco
para tanta chama acesa
e inaugura nossa febre em continuar, apesar de tudo.
Avisto
Os rios limpos, o céu mais azul e as pessoas menos mortas
É de humanidade que se precisa, quando a materialidade não tem mais sentido

Wendell Well

RESTO

A chuva não caiu na noite
secou a saliva, o suor, a loucura secou o medo do escuro
e a solidão disfarçada secou o mundo
o tempo as vestes o vento
secou o corpo as certezas
o vazio as lentes
não sobrou quase nada a não ser essa cidade

Toda vez que o gelo derrete
consigo ter a dimensão das coisas idas a despedida concreta
do tempo
de como se toca uma saudade com as mãos e boca
desse suave instante em existir, evaporar e ser sólido
antes de tudo
quando o gelo esvai tudo some
e no seu reservatório em ser nada permanece uma vontade latente de encher de novo
e de novo
até que tudo seja intocável.

Lily Nungarayi Hargraves

DESABAR

Todas as coisas estão sujeitas
A desabamentos
Prédios, pontes, desejos
Todas as coisas tem limites
Margens
Estamos sempre à beira Do rio, da rua
De atravessar a casa O pensamento
Nas madrugadas estreitas
Os alargamentos podem não ter portas
E entramos em pequenos curtos
Circuitos de nós
De voz, da avó, dos ancestrais
Que tocam os tambores na memória
Na veia
E correm soltas na nossa capacidade de  sonhar 
E remar
Irrigar as seivas calmas do corpo
Do centro
Nos infinitos movimentos de ir
Vir
Permanecer
Tudo está por um triz
diz Maluz Tudo  que reluz
Pode ser espelho Banho de mar
Delírio
E esses desabamentos Servem para lembrar
Da fragilidade de tudo o que é suporte
Seja a perna da cadeira
Ou a minha
Seja aquele muro de concreto Ou o braço suado do rapaz
Que carregava o saco de cimento
Para a construção do prédio que se ergue na esquina.

James Tumthy Gleeson


FOGO

O calor se espalha nas montanhas da alma
E a lua que sorri
É pequena para os lábios do mundo Todo mundo quer muito
e perde muito do que se deseja
...
O calor se perde nas montanhas da alma É preciso escalar a prece
E ver o lado de lá da fé
Porque aqui é tudo muito seca Sem água para apagar a pele O fogo escorre nas vestes
E a gente vai se perdendo na gente...

Está quente essa cidade...
esse mundo todo está quente
                ...

Fotografia por Márcia Bezerra 


Michelle Ferret: Poeta e Roteirista. Formada em Jornalismo e Artes Cênicas. Assinou os roteiros dos curtas "Adeus, te amo" (2016) e "Enquanto o Sol se Põe" (2018) e do longa "Fendas. Ex integrante do grupo Rosa de Pedra (RN), com em atuações com os grupos Poesias e Flores em Caixas e Os Insurgentes o qual tem a poesia como instrumento de voz. É autora do livro "Amor Substantivo Abstrato" (2016) do selo Burritos (SP). E prepara para lançar o livro autoral “Febre”. Em 2019 circulou com a oficina “Poesia e Memória”, através do projeto Arte da Palavra promovido pelo Sesc pelas cidades: Passo Fundo (RS), Pesqueira (PE), Rio Branco (AC), Boa Vista (RO) e Manaus (AM).



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