Notícias falsas de uma outra época | Marilia Kubota


MOSAICO Coluna 12   Crônica

NOTÍCIAS FALSAS DE UMA OUTRA ÉPOCA
A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, fez emergir o fenômeno das fake news. No Brasil, as notícias falsas também elegeram um presidente. A propaganda e manipulação de informação desde sempre são instrumentos da política. Neste mês, quando se celebra, no dia 18 de junho, os 112 anos de imigração japonesa ao Brasil, é bom lembrar como, em outra época, as notícias falsas foram responsáveis por um massacre na comunidade de brasileiros asiáticos.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, imigrantes japoneses e suas famílias se envolveram num conflito interno por causa da difusão de notícias falsas. Uma parte dos imigrantes e seus filhos acreditavam que o Japão havia vencido a guerra. Outra parte, sabia que havia sido derrotado. A desinformação sobre a derrota foi facilitada por causa do isolamento da comunidade.

Quando o governo japonês atacou Pearl Harbor, no Havaí, o governo americano o decretou inimigo e começou a prender os japoneses e seus filhos estadunidenses em campos de isolamento, no norte do país. No Brasil, o governo de Getúlio Vargas, alinhado ao americano, também considerou inimigos os imigrantes japoneses, alemães e italianos e seus descendentes. Escolas, clubes e jornais na língua nativa destas etnias foram fechados e as reuniões públicas, proibidas.

Embora estivessem há 40 anos no Brasil, os imigrantes japoneses e seus filhos ainda mantinham vínculos com a cultura do país emigrante. Com a ideia de um dia voltar ao país natal, os japoneses criaram clubes, jornais e escolas para que seus filhos aprendessem a língua e a cultura de seus antepassados. Nestes locais, a informação sobre acontecimentos na comunidade circulavam. Com o decreto governamental, a informação cessou.

Uma visita ao artista plástico Atsuo Nakagawa | Artistas, Artistas ...

Atsuo Nakagawa

As famílias abastadas tinham em casa rádios de ondas curtas e ouviram o pronunciamento de rendição do Imperador Hiroito às Forças Armadas estadunidenses. Grupos ultranacionalistas, ligados a militaries, interessados em comprar terras a preço de banana, começaram a manipular a desinformação. E não só isto: deu início a uma série de assassinatos de derrotistas (makegumi) ou "corações sujos", como eram apelidados.

Entre descendentes de japoneses, em Curitiba, nos anos 2000 o tema ainda era tabu, e apontavam o pai deste ou daquele como um kachigumi (vitorista), integrante da Liga do Caminho dos Súditos (Shindo Renmei), fundada pelo ex-coronel Junji Kikawa. A Liga matou pelo menos 23 corações sujos em cidades do interior de São Paulo.

A Liga criou uma rede de comunicação  jornais, revistas e até estações de rádio clandestinas para veicular a versão da vitória japonesa. Aproveitando-se da confusão, estelionatários vendiam as terras dos inimigos assassinados a preços abusivos, já que o yen, a moeda japonesa, estava desvalorizada.

Os assassinos preparavam um ritual para os makegumi, entregando um bilhete e oferecendo a chance de suicídio honroso com a espada japoensa. Como os escolhidos recusavam, eram assassinados. Depois, os assassinos se entregavam à polícia brasileira.

A divulgação de crimes nas colônias japonesas reforçou o preconceito de brasileiros. Os conflitos eram tidos como arruaça de fanáticos nacionalistas. Muitos vitoristas foram espancados nas ruas . Com os confrontos na cidade de Tupã e Osvaldo Cruz, a Liga passou a ser investigada pelo Deops  Delegacia de Ordem Política e Social. Seus integrantes foram presos em 1946. 

O jornalista Fernando Morais contou esta história no romance-reportagem "Corações sujos" (2000), que foi adaptado nos anos 2011 pelo cineasta Vicente Amorim, Nas duas obras, este episódio da história dos asiáticos no Brasil é tratado como uma "guerra de fanáticos", desconsiderando o isolamento de comunicação a que foram submetidos. Apesar da publicação do livro e do filme, o assunto ainda é tabu entre filhos e netos de kachigumi.

(Crônica do livro inédito "Eu também sou brasileira", Lavra Editora, 2020)

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