Dois poemas de Anna Maria Moura | Uma poética do não caber

 

Fonte: pixabay.com


Dois poemas de Anna Maria Moura


Uma poética do não caber


Permeável

 

Gosto muito de você e do jeito que me ouve sorrindo da ironia que faço no meu mundo,

gosto por me dar um sorriso de bom dia sem pedir nada em troca.

Por sentar ao meu lado e me deixar pensar na vida, assim sossegada

como se rolasse entre a gente uma conversação telepática

duas pessoas caladas, uma do lado da outra

ambas contemplam o mundo ao seu modo

ambas se sentem felizes, apenas por existir.

E vai, pede pro garçom descer mais um litro de água

transformemos essa em vinho

e nos deliciaremos com a água da chuva e o vento da noite

pois ser selvagem não é escolha ou opção,

é a forma que existimos sem precisar explicar aos outros.

 

(maio 2013)

 

 

Fonte: pixabay.com

 

Lacuna

 

Toda tentativa de me enquadrar é um ato falho.

Eu não caibo!

Nas rodinhas, nos grupos, nos padrões de comportamento e beleza, nas expectativas familiares,

na cadeira da sala de aula e muito menos em um diploma

às vezes penso que o único que me contém é o chão

Da plataforma do mercado de trabalho, startups e grandes empreendimentos ao beco escuro que atravesso com medo nas madrugadas embriagadas

eu repito:

eu não caibo, eu transbordo e me esparramo.

me denomino, às vezes, lacuna...

Me embocetar e me chamar de linda não me torna musa, nem deusa

me faz objeto que de tão descartável é facilmente substituível

cêis num percebem que sou subjetiva demais e inconstante demais pra ser reduzida ao meu gênero e a minha cor?

a minha vivência não é comparativa

meu lattes não avalia meu conhecimento

Sua nota no enem não avalia seu conhecimento

Seu desdém por quem engravida antes de terminar o ensino médio é que avalia o seu discernimento

Pois ainda estamos falando de uma sociedade hipócrita que canta que é lindo rebolar sem calcinha

mas não permite o aborto, nem de vulnerável violentada e quer  as menor se estrepando pra criar filho sozinha

O sabor das minhas palavras vai ter as cores que tu quiser independente do que eu diga

pois toda forma de tentar entender o outro ainda é um meio de enquadrá-lo numa experiência objetiva e eu sou única.

eu sei bem de cada ferida e cada cicatriz que esperei curar em mim e nos outros

sei das flores que vi brotar pelo caminho e das noites que nada fazia parar de doer.

Sei do tanto que me entrego e da medida das minhas mãos e como meus pequenos braços querem abraçar o mundo...

E daí vens me medir com uma régua, me qualificar com um número, me expor ao ridículo simplesmente por não caber?

Tá certo, eu entendo que nesse mundo lógico, o ilógico é que faz sentido, né

Mas peço ao menos que tenha zelo pelo meu destempero

e pelas minhas formas difusas quando chegares assim tão perto de atingir-me como simples obstáculo.




Anna Maria Moura é artista marginal que desenvolve pesquisas em relação à literatura (Poetry Slam) e audiovisual negro, culturas de periferia (Batalhas de Rima) e demais intervenções artísticas urbanas desde 2018. Possui formação em Teatro com ênfase em Iluminação Cênica pela Unemat e é graduanda de Rádio e TV pela UFMT. Atua no Coletivo de Audiovisual Negro Quariterê desde 2017. Participou como produtora do curta Como ser racista em 10 passos de Isabela Ferreira.





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