Um poema de Jade Rainho | "Um gafanhoto e o jardim gradeado"

Fonte: pixabay.com



Um poema de Jade Rainho


UM GAFANHOTO                

                        E O JARDIM GRADEADO

 

 

GRADEARAM O JARDIM

 

do lado

de fora

homens

dormem

seus trapos

sob o vento

sombrio

 

GRADEARAM O JARDIM

 

os olhos

cheios

ainda

buscam

o verde

na mão

a caneta

quer

sentido

desenha

folhas

secas

além

do abismo

 

GRADEARAM O JARDIM

 

vestiram

calcinha

de renda

na índia

e lhe coroaram

vitrine

tamanho

especulação

 

GRADEARAM O JARDIM

 

e dizem

que não sou

poeta

a poesia morreu

asfaltada

no avançar

do nosso

desencontro

progressivo

 

GRADEARAM O JARDIM

 

nas cidades

a solidão

é uma voz

unicelular

homens

hipnotizados

e conectores

portáteis

comunicam

a virtualidade

de seus anseios

por te alcançar

 

GRADEARAM O JARDIM

 

e a música

ilhada

tenta

ensurdecer

o ranger

dos automóveis

no fluxo

atrasado

da vida

 

GRADEARAM O JARDIM

 

e a liberdade

é uma estrada

que já não cabe

em avenidas

 

GRADEARAM O JARDIM

 

e o coração

bomba

veloz

dispara

o sonho

de estarmos

juntos

 

GRADEARAM O JARDIM

 

o corpo

sem órgãos

irrompe

a razão

dos pássaros

e nos força

um grito

 

CPF na nota?

 

GRADEARAM O JARDIM

 

toda

uma tradição

filosófica diz: tudo

que existe

tem Alma

e contempla

Ulpiano complementa

o pensador

tem uma tese: não há

na semente

da rosa

nenhum membro

no entanto

ela é capaz

de sintetizar

elementos

e gerar

cor

forma

mistura

e cria

sem agir

 

mordo um chocolate

a aflição se esgota

em meu espírito

passivo

sacia caminho

 

Deleuze diz

que ao observarmos

a repetição inabalável

do relógio

chegamos ao eterno

 

tic

 

com a duração

de um caju

nas mãos

o pensamento

produz futuro

 

tac

 

o espírito da natureza

no intervalo do tempo

jaz

tranquilo

 

GRADEARAM O JARDIM

 

Descartes

descarta

Deus

na memória

dos instantes

isolados

 

GRADEARAM O JARDIM

 

Narciso

toca

a matéria

e constrói

esquinas

no Google Maps

 

GRADEARAM O JARDIM

 

a inutilidade

da Alma Arte

libera da lama

absurda rosa

criativa

sintética

violeta

 

GRADEARAM O JARDIM

 

forças

reativas

incorporam

os gestos

a renascer

movimento

 

GRADEARAM O JARDIM

 

caixas

e máquinas

eficientes

não sentem

as filas

e agradecem

o chão

 

GRADEARAM O JARDIM

 

classifique

nosso amor: menor

e se sinta

seguro

ao afirmar

possessão

 

GRADEARAM O JARDIM

 

flamingos

rosas

deliram

a valsa

dos espelhos

sagrados

 

GRADEARAM O JARDIM

 

a lua

dourada

no mar

saliva

o sangue

das moças

em 4 fases

 

e eu não sei o que me vê

 

GRADEARAM O JARDIM

 

um gafanhoto

treme

outra pata

invisível

 

dedos

 

galhos

 

seiva

 

 

palavra dita e faz

quem matou fui eu

 

 

GRADEARAM O JARDIM

 

Largo Santa Cecília,

Centro, São Paulo, maio de 2013

 

*Poema presente no livro Canção da Liberdade, de Jade Rainho, 2017.



Fonte: pixabay.com











Jade Rainho (Tucuruí, PA, 1985) é poeta, pesquisadora cultural, documentarista audiovisual, educadora, ativista pelos direitos humanos e da natureza. Coloca seus dons em movimento para servir à transformação amorosa da consciência humana e à preservação e defesa das culturas indígenas. Alguns de seus poemas concorreram a prêmios no Brasil e seu documentário de estreia, Flor Brilhante e as cicatrizes da pedra, foi exibido em 21 países e premiado no Brasil, Bolívia, Peru e México. Atualmente, está concorrendo a uma bolsa emergencial no projeto P-O-E-S-I-A.org – que a possibilitará a dedicação a composição e organização de um novo livro. Também se prepara para a realização de seu primeiro documentário de longa-metragem, a ser filmado após a pandemia.




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