Divina Leitura | Uma leitura de "Ebulição Interna" de Márcia Machado

 

Coluna 12

Uma leitura de Ebulição Interna de Márcia Machado

_ por Divanize Carbonieri


Os cinquenta e um poemas que compõem Ebulição interna, livro de estreia de Márcia Machado, assumem a forma de verdadeiros monólogos interiores escritos em versos. Uma voz poética extremamente reflexiva se debate com questões fundamentais da experiência humana e da contemporaneidade. Em sua maior parte, são composições relativamente longas de versos curtos em que se destacam os pontos de interrogação, sinal de um eu que se questiona constantemente.

Essas questões são, no fundo, endereçadas à própria consciência, e para muitas não há realmente resposta fácil ou mesmo possível. São questionamentos que esbarram muitas vezes nas grandes indagações da humanidade: quem sou, para onde vou, de onde vim? Ou, mais precisamente, “De que matéria somos feitos?”, “Quantas poderemos ser/Em tão curta vida?”, “O que sou além da superfície/Que já não tenha sido à exaustão?”, “E se eu morresse amanhã/O que poderia constar no epitáfio?”, entre tantos outros exemplos.

Dessa forma, é inegável o tom filosófico dos poemas contidos no livro. Mas não se trata de um exercício de abstração pura e simples. Ao contrário, parece existir, nessas criações, um claro objetivo ou direcionamento. A principal busca do eu que surge em Ebulição interna é, sem dúvida, o autoconhecimento. E a poesia se estabelece como o veículo que conduz tal procura incessante. Isso não significa obviamente que o fenômeno poético ofereça soluções definitivas para os dilemas internos, mas investigar-se por meio da poesia acarreta uma compreensão maior da complexidade que nos caracteriza enquanto espécie: os seres humanos são criaturas que desejam saber mais sobre eles mesmos e o mundo do que jamais será possível em suas meras existências.

Mas não é apenas a filosofia que norteia o pensamento poético de Machado. Sendo doutora na área de estudos literários, a autora também explora seu campo de pesquisa, a literatura, estabelecendo diálogos ou paralelismos com autoras e autores consagradas(os) de língua portuguesa, como José Saramago, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão. Tais ícones não aparecem apenas para confirmar a erudição literária de Machado; eles funcionam mais como balizas para a construção de uma poética própria, que dialoga com essas mestras e mestres, mas sempre visando encontrar a voz que a caracteriza e diferencia.

A presença de tal intertextualidade se entremeia até mesmo no título de alguns poemas como “Saramagueando” e “Saramagueando II”. Em seguida, surge no corpo de outros, funcionando como uma espécie de ignição para o questionamento da voz poética: “Lembro o mestre Saramago,/‘convencer é colonizar o outro’./Perco-me em longas horas/De monólogo interior, a tentar/Explicar o inexplicável...” ou “Há tempo Cecília já se perguntava/Em que espelho ficara a sua face.../De lá pra cá se esvaíram/Todas as respostas”.

Existe a generosidade de evidenciar os intertextos, deixando claro para as leitoras e leitores as suas fontes, o que pode inclusive estimular nelas e neles a curiosidade e a vontade de ler essas outras autoras e autores. Nesse caso, a poeta parece ser acompanhada de perto pela figura da professora e formadora de professoras e professores, carreira que Machado segue há bastante tempo. Contudo, quem espera encontrar didatismo nessas composições irá se frustrar. Na verdade, a tradição foi, além de lida e estudada, vivenciada e deglutida pela autora, que já está pronta para dar a sua contribuição pessoal ao intercâmbio de ideias entre poetas.

Preocupações com o contexto social também se fazem sentir nessa poesia de reflexões: “Não verás/País nenhum/(Profetizou Loyola Brandão)/Vale tudo/Por dinheiro/(Emburreceu o SBT)/Na Vale/De lama/Parodiando João Ubaldo Ribeiro/Ferra-se o povo brasileiro...” ou “Natal, ah o que é o Natal?/Mesas sobejando/Indiferença aos famintos/De comida e de afeto.../Mais acúmulo/E enriquecimento/Do selvagem Capitalismo”. Nesses versos, surgem tanto dramas específicos, como o rompimento das barragens em Minas Gerais, quanto mais amplos, como a extrema acumulação de renda causada pela fase capitalista financista da atualidade enquanto a maioria da população continua tendo sua subsistência ameaçada.

Afinal, um eu que se autoquestiona também questionará a coletividade em que se insere. No período em que vivemos especificamente, o político e o social nos atravessam a todo instante, exigindo que nos posicionemos. Não é uma época propícia para isenções. Em relação a poetas, a neutralidade nunca foi uma boa opção. Machado se revela sensível a todas as injustiças sociais que ainda se mantêm no país e no mundo, revelando uma voz que se indigna e protesta contra elas.

Nessa esfera, a situação da mulher, sobretudo da mulher madura, também a interessa, mesmo que seja de forma bem-humorada, como em “Cara, unha, cabelo, pele, memória.../Atrofia-se até o que pensava não atrofiar/A ginecologista quem o diga...”. Numa sociedade que é extremamente cruel com o envelhecimento feminino, trazer para a poesia as vivências das mulheres em torno da menopausa chega a ser quase revolucionário. Infelizmente esses assuntos, com algumas honrosas exceções, continuam sendo um tabu até mesmo para a arte. Mas já que acometem uma boa parcela da humanidade, não deveriam ser tratados como irrelevantes.

Machado ainda atravessa um outro terreno muitas vezes interditado ao debate: a maternidade vista sempre como algo sublime: “Mães que só sofrem/Sem delícias/Filhos carregam cargas/De doenças emocionais/De mães que foram mães/Por acaso da natureza/Imprudência/Violência”. Torna-se explícito que as mães também falham, o que não deveria causar espanto, uma vez que são seres humanos como os outros. Além disso, nem sempre podem contar com o apoio externo para criar sua prole, que age muitas vezes com ingratidão: “Adultos não crescem/Jamais assumem seus erros/São carmas que os pais/Devem carregar?/Aliás, mormente,/As mães/Eternas culpadas”. O chamado da poeta é para que possamos considerar as relações maternas e filiais com menos idealização, sob o risco de abafar subjetividades.

Por tudo o que foi levantado aqui e por muitas outras razões, Ebulição interna é um livro que merece ser lido. Aquelas e aqueles que assim o fizerem certamente sairão transformadas(os) da experiência, mais preparadas(os) para lidar com as próprias questões existenciais e sociais.


Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.




Nota: Para adquirir o livro Ebulição Interna, entrar em contato com a autora por suas redes sociais (https://web.facebook.com/marcia.elizabeti).



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