Para não dizer que não falei dos cravos | Um poema de Ricardo Leão

 

Coluna 09

Um poema de Ricardo Leão


Billie Holiday não merece


Disseram ao jovem negro que ele não é uma vítima.

Que os negros têm que lutar, mas através do trabalho,

Até que um dia sejam reconhecidos como iguais.

Que os negros têm que esperar, com paciência,

Que os brancos os tratem como semelhantes,

Que os brancos um dia os vejam como são,

E que combater o racismo é, na realidade,

Apenas promover mais segregação.

 

Disseram ao jovem negro, recentemente eleito,

Que não é necessário políticas públicas,

Tampouco cotas raciais e ações afirmativas,

E menos ainda secretarias ou ministérios

Que ajudem a diminuir o preconceito,

A violência, a intolerância e os homicídios

Contra milhões de jovens negros do país.

Que tudo isso é apenas desperdício de verbas públicas,

De impostos, e cabide de cargos e empregos.

 

Disseram ao jovem negro que seus heróis são assassinos,

Que os negros não têm direito a um dia no calendário,

Que todos têm que ser tratados de forma igual,

Mesmo diante da assimetria e da profunda desigualdade,

E que os negros não podem cobrar dívidas históricas,

Que todas já foram até quitadas e dissolvidas,

E que resta aos descendentes dos vilipendiados e escravizados

Ocupar o seu lugar entre os desiguais, através do mérito,

Em uma sociedade onde há apenas privilegiados,

Onde quase todos são brancos ou não são negros.

 

Disseram ao jovem negro que gays e mulheres

Não têm que ter atenção especial por parte do Estado,

Que apenas o deus mercado pode salvá-los,

Porque o contribuinte não pode financiar a igualdade,

E que o sonho de Martin Luther King é apenas um sonho,

E por todas as gerações vindouras será só um sonho.

 

Disseram ao jovem negro que a Ku Klux Kan não existe,

Que os Panteras Negras eram apenas terroristas,

Que os escravos foram bem tratados pelos seus senhores,

Que os netos dos senhores de escravos são gente de bem,

E é apenas uma coincidência que negros não são médicos,

Apenas um acaso que as domésticas sejam negras,

Apenas uma casualidade que os presidiários sejam negros,

Apenas uma eventualidade que os políticos sejam brancos,

Apenas um acidente de percurso que negros sejam pobres,

Apenas uma questão de azar poucos negros nas universidades,

Como também na literatura, no cinema, e tudo o mais.

Que os negros apenas precisam, com efeito, esforçar-se mais.

Que, um dia, colherão o resultado de tudo isso.

 

Enquanto isso, negros policiais revistam jovens negros,

Que são averiguados todos os dias apenas porque são negros,

e são expulsos das praias, restaurantes e shoppings,

Apenas porque vestem negro, falam negro, olham negro,

Respiram negramente, são suspeitamente negros,

Sobretudo quando dirigem carros e usam roupas caras,

E ostentam sinais de enriquecimento ou boa vida,

Quando deveriam estar limpando o chão ou privadas,

E olhando baixo quando os brancos falam,

E pedindo licença à passagem de todos os brancos,

Apenas porque são negros. Porque são negros.

 

Mas disseram ao jovem negro que ignore tudo isso.

Que isso é exagero, que as coisas não são assim,

Enquanto ouve, à noite, a voz dilacerante de Billie Holiday,

Que aos dez foi violentada sexualmente por um vizinho,

E, depois, internada em uma casa de correção,

Até que, aos doze anos, lavou o chão de prostíbulos,

E aos quatorze tornou-se enfim uma prostituta.

 

Mas disseram ao jovem negro que tudo isso

É apenas uma questão de oportunidade e escolha,

Que até Billie Holiday teve chances,

Mesmo que ela tenha sido enganada por gigolôs,

Que ela tenha apanhado de seus amantes,

Que ela tenha perdido tudo, menos 70 centavos,

Ou que ela tenha morrido de cirrose hepática. 

Nada disso importa, nada disso diz algo.

O jovem negro acha tudo isso exagero.

É o que todos dizem. É o que ele diz.

 

Porque disseram que reclamar é ser vítima.

O jovem negro não quer ser vítima, de nada.

Sobretudo do passado, de sua própria história.

O jovem negro quer apenas ser eleito, amado.

Ele deseja apenas o sucesso, como todos.

Mesmo que para isso, ele se aparte

De outros jovens negros que, todos os dias,

Ouvem Billie Holiday tarde da noite,

Com a sensação de que são explorados e seviciados.

E lembram que ela morreu no hospital,

Algemada ao seu próprio leito,

Como outros milhões de negros da história

Que morreram acorrentados e anônimos.

 

Mas o jovem negro não acredita nisso.

Porque disseram que Billie Holiday era uma viciada,

Que era uma traficante de narcóticos,

Que a lei a prendeu antes de sua morte,

Que as drogas tinham-na devorado e devastado,

Que os vermes de todos os excessos e vícios

A desgastaram e a reduziram a nada,

Que ela era mulher cínica, devassa, profana,

Que apenas livrou-se da condenação

Porque a morte a tirou da jurisdição terrena,

Mas que ela teve chances, como todos.

 

O jovem negro acredita que ela colheu

Apenas o resultado de suas próprias ações.

Que ele terá outro destino, outra vida.

Que Billie Holiday o perdoe.





Ricardo Leão é o nome literário de Ricardo André Ferreira Martins. Nasceu em São Luís do Maranhão, aos 2 de março de 1971. Poeta, ficcionista, ensaísta, professor universitário. É autor dos seguintes livros: Simetria do parto (2000, poesia, Editorial Cone Sul, Prêmio Xerox de Poesia), Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado (2002, ensaio, SECMA), Primeira lição de física (2009, poesia, SECMA, Prêmio Gonçalves Dias de Poesia), Os dentes alvos de Radamés (2009, 1ª. edição, SECMA, Prêmio Gonçalves Dias de Ficção; 2016, 2ª. edição, Benfazeja), No meio da tarde lenta (2012, poesia, Paco Editorial) e Os atenienses e a invenção do cânone nacional (2011, ensaio, 1ª. edição, Ética, Prêmio de Ensaio da Academia Brasileira de Letras de 2012; 2013, 2ª. edição, Instituto Geia), A plumagem do silêncio (2015, poesia, Nobres Letras), Minimália ou O Jardim das Delícias (2017, poesia, Penalux), A episteme do efêmero (2020, poesia, Patuá).


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