A luz da poesia de Clarissa Macedo


imagem: pinterest


o evangelho segundo a cotação do dólar
para Nílson Galvão

o padre-pastor, que levanta a calça do menino com o novo testamento em punho, chora feito criança quando vê a cara do dízimo na bolsa de valores em ações da santa amada igreja que veta a prole do terceiro sexo, que treme o cajado na escola dominical e aperta o cinto que bateu na mulher em casa porque ela fez o café errado. ¾ deus, esse homem! me dá sua camisa de sangue, por favor, mediante boleto bancário, e ficarei curada da doença, da chaga, da dor do que ainda resta de mim, esse punhado de fantasia e fé que só teve da vida a rima da ilusão.


Coma

Todos os dias
veste a coleção de tragédias
e sai:
visita o trabalho
compra pão
escolhe no carro o lugar de seu destino.

Todos os dias
é um corpo inflamado
que persevera os aparelhos ligados
mastigando a solidão de meia vida.

Com os vazios todos num cortejo
escolhe o desastre que melhor veste
e parte para a brecha que ninguém habita
para um tempo que sequer conhece.


Correnteza
para Franck Santos

No racho fundo daqueles pés
um rio inteiro
que corre sempre pro arquipélago.


As flores do oráculo e a busca pelas coisas inauditas
para Iolanda Costa

Que parede é essa que nos habita
marcha para as pedras
e precipícios
com lajedos e musgo
serpentes e rosas?
Que chuva mística
é essa que no tempo
encarna um gigante
e nos delira e devora?
Que augúrio trazemos
às costas em que voamos
onde a carne selva e chora?
São os maços, poeta,
os maços de sete horizontes
que carpiram a deusa triste
cuja flor nasceu fatal.


Prece

Na vida,
aprendi os salmos perdidos;

são eles que me pegam
quando o continente
cobre os meus olhos
de deserto.


Imemorial

Abro a gaveta e surgem
celas, velhos faunos,
a aventura do vazio
e o hábito de guardar fracassos.







Clarissa Macedo (Salvador – BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora e pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou a plaquete O trem vermelho que partiu das cinzas (Pedra Palavra, 2014) e os livros Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, 7Letras, 2014; em 3ª reimpressão pela Penalux, 2019; traduzido ao espanhol por Verónica Aranda, editorial Polibea, Madrid, 2017) e O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição (Ofícios Terrestres, 2019). Integrou, em 2018, o Circuito de Autores do Arte da Palavra, promovido pelo SESC. É uma das organizadoras do Sarau Som das Sílabas, idealizado por Gabriel Póvoas. Contato: clarissamonforte@gmail.com / clarissammacedo.blogspot.com

Comentários

  1. Belos e densos poemas dessa escritora singular. Amei o poema "as flores do oráculos.." especialmente.

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