As fissuras do mal | Marilia Kubota


MOSAICO Coluna 04   Resenha
As fissuras do mal 

por Marília Kubota

O dicionário registra dois significados para a palavra fissura. Uma formal, que significa  pequena abertura longitudinal, fenda, rachadura ou sulco, e outra informal:  apego extremo, forte inclinação, loucura, paixão. Os personagens dos contos de livro "Fissuras", de Henriette Effenberger (Penalux, 2018) trazem estas rachaduras. São párias, indivíduos que habitam as margens da sociedade: trabalhadores de classe social  inferior, mulheres que sofrem violência doméstica, jovens delinquentes, idosos, religiosos. O eixo comum a todos eles é  o sentimento de solidão.  

Henriette narra com destreza, revelando domínio da linguagem. Com enredos despretensiosos,  envolve a leitora ou o leitor em uma tessitura viva, de modo a surpreender no final. O fecho dos contos acaba sendo o ponto forte das histórias.

As rachaduras sociais irrompem nas frestas, revelando um conflito entre o Bem e o Mal. Neste embate, o Bem é a ordem que reprime os instintos selvagens e o Mal, a rachadura: a  impossibilidade de contê-los, especialmente para os mais vulneráveis, que suportam a maior crueldade, a desigualdade social, como explicita a frustração do operário da fábrica de tecidos, em "Três apitos" :

Pela primeira vez sentiu pena das lagartas que não se transformariam em mariposas, que jamais voariam ao redor da luz, que, a despeito do previsto pela mãe natureza, não teriam asas e se transformariam em tecidos macios para tocar peles igualmente macias. (pág. 37)



Kristiane Foltran

Se a ordem social é repressora, são os de classe social inferior os mais desfavorecidos, sofrendo com o achatamento e respondendo com a força bruta ou a selvageria. Em "O demônio quando quer fica bonito", a narradora apresenta os infortúnios da vida da irmã, vítima do marido; em "Parafraseando Sêneca", um jovem tenta ser herói e salvar uma garota de estupro; "Arre, capeta" mostra um menino sobrevivente de uma família disfuncional.

Os religiosos, que deveriam representar o Bem absoluto, não conseguem conter o Mal, como se vê em "Pai Nosso" e "A redenção". A desilusão em relação à vocação e os assaltos do universo mundano os abalam. Os idosos são vítimas do culto ao individualismo, que os relegam à solidão, como se apresenta em "A velha da sacola", "Horas cinzentas" e "Miados ao léu".

É no conto "Fissura" que a rachadura aponta como o Bem pode ser cruel, no encontro entre dois adolescentes, em pólos opostos da pirâmide social. A adolescente mostra que nem sempre a  marginalidade é a única saída para os excluídos. Os reiterados abusos sofridos durante a infância fortalecem a jovem negra, ensinando a combater o mal com astúcia e inteligência.

Henriette Effenberger nasceu em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, onde mora. Publicou "A ilha dos anjos" (coautoria com Maria Dulce Louro, 2002),  "Linhas tortas" (2008) e os infantojuvenis "As aventuras do Superagora" e "Vida de Sabiá - o que sabiam os sabiás além de assobiar", vencedor do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil em 2009. Em 2017, organizou as coletâneas "Horas partidas" e "Mulherio das Letras".



Comentários

  1. Excelente resenha. Henriette Effenberger é uma grande escritora. Parabéns, Marília, pela maravilhosa coluna!

    ResponderExcluir
  2. Excelente resenha. Adoro os contos de Henriette!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

Cinco poemas de Eva Potiguar | Uma poética de raízes imersas

A vendedora de balas - Conto

Um poema de Mar Becker | "à parte do reino"

Araceli Otamendi e Isabel Furini: Sonhos

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

A POESIA FANTÁSTICA DE ROSEANA MURRAY | PROJETO 8M

Resenha 'afetiva' do livro O VOO DA GUARÁ VERMELHA, de Maria Valéria Rezende