UM TRECHO DE PREMIADO ROMANCE DE ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA | VÉSPERA DE LUA | Projeto 8M


fotografia do arquivo pessoal da autora

8M

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal) 

Hoje é dia de homenagear a grande romancista Rosângela Vieira Rocha, com o primeiro capítulo de seu livro Véspera de Lua

I

Se pudesse destruir todas as pontes e dizer ah, estou aqui, eu vim, vim para o amor, todas essas frases cinematográficas e baratas, ou não tão baratas, as frases que selecionava de seus poetas prediletos e que escrevia nas primeiras páginas dos livros, nos cadernos, há anos, muitos. Pudesse dizer isso sem culpas e agir solta, um bicho. Entregar-se uma única vez a um grande impulso e esquecer a idade que tem, os anos, tantos, que peso, e quer a leveza, ser finalmente leve, mula sem cabeça, só os sentidos e o coração. Não rever mais o vivido, parar de passar eternamente a fita procurando as lições, os caminhos, justificando-se para si mesma. Conseguir nascer de novo sem o antes, nenhuma opção feita, nem compromissos nem a culpa. Empurrar a vida vivida dentro de um poço e nunca mais reencontrá-la. Pudesse fazer a mágica sem magoar ou ferir, como é torturante a certeza de provocar a dor. Sabe que algumas escolhas não são descartáveis e não se pode desfazê-las. E, até para mudar seus rumos, é necessário reconhecê-las. Mas não quer o reconhecimento, está sem forças. Fosse possível, apagaria suas experiências com um apagador gigante. A consciência de que não descansa porque o vivido não deixa, sempre as lembranças, tantas coisas, assumiu responsabilidades, lutas, e ainda existem todos os pontos de referência, não quer referências, ai, liberdade é palavra bonita e inatingível.  Não somar nunca mais acertos e erros, só queria a graça, a dos escolhidos, de reaparecer outra, nova em folha e sem história. Pudesse  não acrescentar nem pesar nem comparar. Ser incoerente, inconsciente - por que não? -, mas com a segurança de não ter recaídas. 

Tem de escutar o barulho dos granizos. Que tarde!, não poderia ser mais trágica. O vento parece uma cantiga de bruxa, uma só não, é um coro de bruxas furiosas, batendo seus cabos de vassoura.

Acha que não vai conseguir passar de hoje. E procura palavras, ah, as palavras, ai, palavras que digam o que seu corpo grita. Sabe o perigo das palavras. Queria tê-las amigas, próximas e solidárias, mas, quando as busca, sente a inutilidade do gesto.

A morte deve ser assim, sem palavras. Estar sem elas é entregar-se ao tédio, à mesmice sem graça dos gestos diários. Ir atrás de palavras lhe dá a ilusão de que, de alguma maneira, o movimento lhe pertence. E, se puder se movimentar, não morre.

Jamais seria escritora, não tem disciplina. Além disso, escrever é tão cansativo e enjoado. Talvez por isso as pessoas que escrevem sejam enfadonhas, que castigo, as palavras. Não quer lhes pagar nenhum tributo, só usá-las para apaziguar-se.

A personagem de Liv Ullmann não lhe sai da cabeça:

Queimei todas as pontes, só para estar com você. Não posso mais desistir. 

Sabe que é impossível queimar pontes, pelo menos para ela sempre foi difícil. Procura em si a coragem, eterno objeto de admiração. Poderia algum dia ser audaz?

Se E morresse tudo seria tão simples. Choraria muito, pobre E, pessoa tão boa, que pena, diriam. dentro do caixão com uma infinidade de flores brancas e amarelas. Sentiria sua falta, uma grande falta concreta para ser sentida. Seria capaz de morrer de chorar, melhor morrer de tristeza que de medo. Um pouco antes da morte se descobriria livre e sem peso na consciência, livre e limpa. Sofrer por E seria sua purgação. 

Todos lamentariam sua sorte e por isso teria permissão para lamentar-se, não esse lamento de agora, que nem ela mesma consegue levar a sério.  A perda sem remédio, o cadáver e as flores talvez pudessem lhe servir de passaporte para o mergulho numa dor inquestionável. Teria um motivo real para sofrer à vontade, ela que tem sido sempre acusada de inventar o sofrimento. 

Comove-se com a mentira e chora sentindo o cheiro dos monsenhores, tantos quantos convêm a um cadáver especial. Os amigos lhe dão abraços de pêsames. Encolhe-se para recebê-los, imaginando-se na cozinha tomando mingau de aveia feito por alguma amiga prestativa. Detesta mingau de aveia mas engole algumas colheradas só para retribuir a solidariedade alheia.

Perdeu E e agora nada lhe importa ou tudo lhe importa porque conseguiu de novo o seu marco zero.

Envergonha-se de sua covardia, horrorizada. Não deseja que E morra de verdade, só queria não ter de enfrentar o desencanto e o próprio fracasso. Foi difícil unir-se a E mas muito mais difícil é deixar E. Que motivos concretos poderia apresentar? É lícito, é justo, é suficiente o fato de não sentir mais desejo? Desde quando E pertenceria ao grupo das irmãs, irmãos? E se a continuidade do desejo fosse um embuste, se todos soubessem há séculos que  não perdura e só ela ignorasse? Mãe, quando não se deseja mais, o que se deve fazer? Pai, quanto tempo dura o desejo? cinco, dez, vinte anos, quanto tempo? Irmã, como posso dizer a E que está tudo bem, a culpa não é sua, é minha, não mereço perdão porque parei de sentir, não quero sexo, mas era bom, não era, não, talvez sim, não sei. Mudei e mereço pagar por isso, ou, quem sabe?, o problema é que continua a mesma pessoa enquanto não sou mais a mesma  ou ainda  - segundo opiniões abalizadas, sempre sobre o sexo dos outros - o nó da questão é o relacionamento, já que sexo é feito a dois, pelo menos usualmente. 

É possível que seja uma crise passageira, quem sabe tudo pode se reverter, voltar a ser como antes. E depois, o relacionamento entre irmãos não tem fim. Se E realmente tivesse se transformado em irmão, irmã, carne e osso semelhantes, estaria presa para sempre.

Imóvel, em oração, espera a graça de sentir o corpo vibrar de novo.

(...)


*

capa do livro Véspera de Lua

Apresentação de Véspera de Lua:

Uma lua de mau agouro e as dores do feminino

(Chico Lopes)

Embora já houvesse escrito o romance "Rio das pedras", a estreia de Rosângela Vieira Rocha em livro publicado se deu com "Véspera de lua", romance que a tornou premiada e conhecida e a marcou como promessa decisiva na literatura de autoria feminina mais consciente realizada no país. "Rio das pedras" só foi publicado a seguir, e em sucessão vieram os contos de "Pupilas ovais" (livro do qual tive o prazer de fazer o desenho da capa) e o romance "Fome de rosas", seguidos por uma série de incursões na literatura infantojuvenil. Como amigo, acompanhei tudo isso de perto. E não pude deixar de notar a coerência de um projeto literário bem evidente em Rosângela: a abordagem do mundo feminino, a psicologia de personagens fortes, de mulheres que se debatem entre os papéis tradicionais, mas com o pé decisivo na libertação e na vontade de desmascarar a hipocrisia a que uma sociedade machista as obriga. Quase sempre essas mulheres dirão um solene Não ao que o mundo convencional lhes propôs, opondo-se a um patriarcalismo rígido e questionável e arriscando-se em caminhos difíceis, conquistando a sua independência e a sua integridade com muito suor. E colecionando incompreensões. 

"Véspera de lua" é um romance curto e forte. Paula é uma mulher predestinada a um desejo estigmatizado pelo preconceito, vinda de uma família pobre (o tesouro de suas lembranças remete a coisas que o leitor atual poderá achar difíceis de situar, mas são petiscos para os memorialistas - os comprimidos de Cibalena, os sucos falsos feitos de papel de seda, o pó de arroz Lady e outras). Ela sofre horrivelmente com suas cólicas menstruais, e nisso o livro abre caminho para a discussão da célebre  "TPM", que tanto inferniza o universo feminino, fazendo-o suspeito de maldição bíblica. 

Eu nunca vira na literatura feminina brasileira uma abordagem tão crua e dramática desse tema (que explica o belo título do livro, devido às implicações que os influxos lunares poderiam ter sobre a menstruação). Os amores femininos, Ana, Lúcia, Ester, fazem também com que o lesbianismo de Paula seja um terreno repleto de interrogações, por vezes ardentemente aceito, por vezes amaldiçoado, como se ela não conseguisse escapar às imposições sociais, especialmente as projetadas por sua mãe, que a queria uma garota como as outras. Ela é um personagem relutante, o que faz com que, psicologicamente, a narrativa seja ainda mais rica. Melhor ainda é que as amantes de Paula são vistas com muito realismo, algumas frívolas, outras traiçoeiras, e isso não apenas porque vivem uma sexualidade transgressiva - como escritora, Rosângela sabe que a questão do caráter não se restringe à sexualidade  e, marginalizados ou aceitos sexualmente, os seres humanos são fundamentalmente ambíguos em seus passos morais e psicológicos, sendo o amor  um terreno movediço capaz de tragar muitas vítimas em suas ilusões. 

São poucas páginas, que podem ser lidas num único fôlego, mas causam uma impressão forte - a de uma escritora que tem o que dizer e que o diz sem embelezamentos desnecessários, embora não falte lirismo às lembranças  (por outro lado até cômicas) de Paula. Um romance original, uma estreia que previsava ser resgatada, o que é feito com brilho nesta segunda edição.

....

8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas' iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.



fotografia do arquivo pessoal da autora 


ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA é escritora, jornalista, graduada em Comunicação, habilitação Jornalismo, pela FAC/UnB, e em Direito pela PUC - Salvador/BA. Cursou mestrado em Comunicação Social pela ECA/USP. É professora  aposentada do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da UnB. Tem textos avulsos premiados, como a crônica 'Um homem indelicado', que obteve Menção Honrosa no 'VII Concurso Rubem Braga de Crônicas', promovido pela Academia Cachoeirense de Letras. Foi colunista das revistas literárias digitais Verbo21 e Germina. Atualmente, tem coluna na revista cultural digital Flor de Dendê. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017. 

Livros publicados: Véspera de lua (romance, vencedor de vários prêmios, entre eles o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG/1988 - Belo Horizonte/MG: Editora da UFMG: 1990, e Guaratinguetá/SP: Penalux, 2015 - 2a. edição); Rio das pedras (novela vencedora da Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, da União Brasileira de Escritores, classificada entre os dez finalistas da 4a. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira - Brasília/DF: Secretaria de Estado de Cultura, 2002); Pupilas ovais (contos, Brasília/DF: LGE Editora, 2005, selecionado para obter o apoio do FAC/DF); Fome de rosas (romance, FAC/Secretaria de Estado da Cultura do DF, Edições Dédalo, 2009); O indizível sentido do amor (romance, São Paulo/SP: Patuá, 2017); Nenhum espelho reflete seu rosto (romance, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2019); O coração pensa constantemente (romance, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2020) e Invisíveis olhos violeta (romance, e-book, Amazon, 2021). Também publicou sete livros infantojuvenis: A festa de Tati (infantil, Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2008, 2a. ed. 2011); Dias de santos e heróis (infantil, São Paulo/SP: Prumo, 2009); Três contra um (infantil, Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2011 e 2015); Nem tudo foi carnaval (juvenil, Belo Horizonte/MG: Editora RHJ, 2012); Janaína, a bailarina (infantil, Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2012 e 2015); O macuco Felício (infantil, São Paulo/SP: Editora Cortez, 2014); e O vestido da condessa (infantil, Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2014).

Participação em antologias e coletâneas: Antologia de Poetas de Brasília (coord. editorial Christina Oiticica, DF: Shogun Editora e Arte Ltda., 1985); Dicionário de Escritores de Brasília (org. Napoleão Valadares, 2ª e 3ª edições 2003 e 2012); Antologia do Conto Brasiliense (org. Ronaldo Cagiano, Brasília/DF: Projeto Editorial/Livraria Suspensa, 2004); Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (org. Luiz Ruffato, São Paulo/SP: Editora Record, 2005); História da Literatura Brasiliense (org. Luiz Carlos Guimarães da Costa, Brasília/DF: Thesaurus, 2005); Todas as gerações - o conto brasiliense contemporâneo (org. Ronaldo Cagiano, São Paulo/SP: LGE Editora, 2006); 7º Prêmio Escriba de Contos (Piracicaba/SP: Secretaria Municipal de Ação Cultural, 2009); Balões Coloridos - Crônicas (Porto Seguro/BA: Editora Via Literária, 2010); Mulheres - Prosa de ficção no Brasil 1964-2010 (org. Marcia Cavendish Wanderley, Rio de Janeiro/RJ: Ibis Libris/FAPERJ, 2011); Dicionário de Mulheres (org. Hilda Agnes Hübner Flores, Florianópolis/SC: Editora Mulheres, 2011); Novena para pecar em paz (contos, org. Cinthia Kriemler, Guaratinguetá/SP: Penalux, 2017); entre outras. 


 












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