Um Conto - por Maria Amélia Elói


Lasar Segall


Fluxo

Por Maria Amélia Elói

Eu precisava conversar com alguém hoje, com qualquer pessoa. Pode ser com você, moça? Que bom que você se sentou aqui do meu lado. Senão eu era até capaz de ficar falando sozinha. Prefere que eu te chame de senhora? Não, né? Você parece muito mais jovem que eu. Não desvie o olhar, por favor. Você pode me ouvir um pouco? Ah, obrigada. Minha fala não vai incomodar. Não sou de pedir dinheiro nem comida, nem fico vendendo balinha nem saco de lixo nem pano de chão nem goiaba nem biscoito de vento nem pipoca de isopor. Tudo bem? Você pega este ônibus de vez em quando? Eu não. É muito raro. Só estou nesta linha porque acabei de sair de uma consulta no Hospital de Base. Hoje finalmente fui atendida, acredita? Você trabalha na Asa Sul? Ah, sim. Então, você vai fazer a caridade de guardar seu celular na bolsa e me escutar um bocadinho? Graças a Deus. Tem hora que a gente precisa falar com os outros, né? Qual é mesmo a sua graça? Ah, nome bonito. Minha vó, mãe da minha mãe, se chamava assim. Eu não conheci, não, mas me falaram que era uma mulher muito vistosa e inteligente. Ela morreu de parto, quando minha mãe tinha cinco anos.
Não pense que é história feita de boniteza. Se quiser um adianto, posso dizer que, até os dias de hoje, não teve um santo dia nesta minha vida que passei macia, sem sofrer.
Meu primeiro menino nasceu fraco, desenganado. Eu já cuidava dos meus irmãos mais novos, carregava no colo, dava comida, e eles eram muito danados, vivos demais. Logo quando era pra eu ser mãe de verdade, peguei um menino morto nos braços. Tadinho. Nem tive coragem de aprender o rosto dele direito. Minha mãe enterrou o bebê numa caixa de sapato, lá no terreiro do sítio. Eu tinha dezesseis pra dezessete anos. A regra não estava nem ajeitada ainda. Tinha mês que vinha, tinha mês que não vinha. Meu corpo era de menina criança, garota que brincava de casinha e tomava da casa de verdade. O homem que me botou menino foi o dono da venda, que me vendia fiado. Meu bucho ficou meia-lua, de um redondo frouxo. Parecia uma barriga d’água.
Depois, não parei de emprenhar. Só da segunda vez o embrião vingou, mas o bebê não viveu comigo. Não é bom viver sem filho, moça. Você já perdeu algum? Ah, não pensa em ser mãe? Sei.
Entreguei o pequeno pra dona Teca, que era a patroa da minha mãe. A mulher prometeu que ia cuidar bem dele, com carinho, deu pra ele o nome de Ricardo. Mas depois fiquei sabendo que o garoto virou um jerico de carga pra dona Teca. Parece que ele só ficou na escola até o quarto ano. Nunca mais encontrei com ele. Meu menino deve estar um homem feito. A última vez que vi uma foto dele, ele estava com doze anos. Nossa, o motorista deste ônibus é meio bruto, hein? Coitado desse povo em pé. Ele é sempre desse jeito? Credo.
Pois é. Toda vez que ficava prenha, eu tinha muito sangramento, mas não podia parar de trabalhar, senão a patroa me dava o fora. Tem cada patroa braba! Nem parece que é mulher que nem eu. Fiz faxina pesada com tudo quanto é moléstia, enxaqueca, gripe, febre, prisão de ventre, pressão baixa, pressão alta, diabete, erisipela, cistite, anemia... De vez em quando eu desmaiava em cima do tanque, mas a roupa tinha de ficar branquinha, assim da cor dos seus dentes. Nossa, seu sorriso é lindo. Agora que eu reparei direito.
Sabe que uma patroa destrambelhada fez eu me deitar com o marido dela, e eu grávida de sete meses? Era uma fantasia lá deles, e eu fui na conversa – pra obedecer e pra conhecer alguma novidade, que eu não era das mais safadas, mas também não era inocente. Só que não me diverti nem um pouco. Me arrependo. Só quem gostou da brincadeira foi o homem, aquele cavalão que me machucou. E a mulher ainda ficou com ciúme de mim e me tirou o trabalho, acredita? Como eu não era fichada, não tive direito a nada. Por conta dessa aventura, o neném nasceu prematuro, ficou dois meses internado e morreu. Depois tive um monte de complicação de saúde. Uma atrás da outra.
Mas nunca abortei por minha conta. Todo desmancho que eu tive foi sem eu querer. Juro pra você. Engravidei várias vezes. Até perdi a conta. Teve um ano que escapuliu um casal de gêmeos em janeiro e uma menininha em novembro. Já ouviu falar de alguma mulher que perdeu três filhos num ano só? Fui eu, moça. E chorei toda vez, porque não acho certo uma pessoa morrer antes de conhecer qualquer coisa nesse mundo. Aqui é tudo bem sofrido e sem descanso, mas triste mesmo é nem ter a chance de nascer. Você pensa assim também?
Na verdade, peguei barriga sem querer muitas vezes e, quando eu quis de verdade ter um filho e até me preparei pra ser mãe, fazendo exame e tratamento, não deu certo. Até me casei com um moço bom, o Genaro Neto. A gente se gostava de um jeito que não tinha que separar nunca. A gente usava até aliança. Mas eu já tinha quarenta, os hormônios estavam meio descompensados e não consegui mais engravidar. Fizemos tentativa por quatro anos, com médico acompanhando, tabela, seguindo a natureza e tomando remédio caro e até injeção. Aí, veja que coisa, como eu não dei nenhum filho pra ele, Genaro espalhou pros vizinhos lá do P Sul que eu já estava velha e esgotada, que eu era a culpada da infelicidade dele. Muito macho e cheio da razão, ele saiu de casa pra se juntar com uma moça de quadril largo e jeito de parideira. Mas sabe que ela também não engravidou dele? Pelo menos até o ano passado o Neto ainda não tinha conseguido virar pai. Ele até tatuou Bisnetinho no braço (que castigo um bebê chamar Genaro Bisneto), mas a mandinga não deu resultado. Claro que não, moça. Não tenho nada com isso. Não sou dessas que fazem reza ou baixaria pra atrapalhar a família de ninguém. Penso que é ele mesmo que tem esperma frouxo. O seco deve ser ele, e não as companheiras dele. Com quase sessenta, sempre se deitando com mulher, trocando de cama, e nenhuma embarrigou dele? Muito esquisito.
Minha história não está te estorvando, né? Ah, ainda bem. Não gosto de chatear. É que é tanta água turva pra empestear a vida da gente. Tragédia pequena, tragédia grande, cólica, unha encravada. Já quebraram meu coração em tantas lascas, que hoje o coitado não sara mais. Já sofri humilhação de toda natureza. Mas pelo menos a fome – não existe nada mais vergonhoso que tolerar a fome –, essa besta parou de incomodar. Frio não passo mais também. Mas quando morei com uma dona no Paraná, dormia num quartinho escuro, sem laje, sem aquecimento, onde só cabia meu choro gelado. Apanhar da polícia só aconteceu poucas vezes, quando minha mãe morreu de uma doença feia e rápida e eu fiquei uns dias dormindo na rua com meus irmãos.
Não, a fé eu não perco. Senão eu já tinha morrido, ou na última dengue, ou naquelas curetagens do posto de saúde, ou no acidente de bicicleta (o ônibus me acertou em cheio e fiquei de coma uma semana), ou quando a dona Zilá flagrou um amasso meu com o filho dela – imagine só uma empregada pegando o príncipe – e ela me empurrou da janela e quebrou minhas costelas. Ali eu senti dor, viu? Foi o porteiro que me ajudou, chamando o Samu. Ninguém foi me visitar, quando fiquei internada. Você também tem religião? Sei.
Ter esperança é uma coisa que aprendi com a tia Sandra, que apanhava do marido militar lá na Samambaia. Ela aguentou firme muito tempo até arranjar um jeito de matar o maldito com veneno. Ninguém descobriu que foi ela. Hoje a esperta recebe uma pensão e está mais feliz. Também achei bem feito pra aquele lá.
Já tá querendo olhar o celular? Escuta só mais um pouco, moça. Estou terminando. Sim. Obrigada pela atenção. Hoje estou solteira, mas não desisti de ter filho. É o meu maior sonho. Tem um moço na minha rua, que acho que topa se deitar comigo. Já pensou se aparece uma criaturinha sapeca na minha vida agora, um bebê rechonchudo e gostoso? Se essa graça me acontece, eu juro que não exijo nada do pai da criança, nem PA, nem guarda repartida, nem compromisso. Não reclamo de nada e vou trabalhar muito pra montar o enxoval mais lindo, parecido com aquele das gêmeas da dona Nilma. Que nada. Sou muito forte. Estou mais pronta que nunca pra cuidar de um pacotinho. Não entrego filho meu mais pra ninguém.
Como eu te falei, estou saindo da consulta agora. Não é nada grave, não se preocupe. Só a minha regra, que está meio descontrolada. Coisa de mulher. O médico disse que é menopausa precoce. Não. Nada impede. Toda doença que eu pego sara depressa. Desato problema com facilidade. Já sangrei tanto na vida. Logo, logo, eu engravido de novo. Já vai descer na próxima parada? Vai com Deus, moça. Foi um prazer te conhecer.
Oi, minha senhora. Deixa que te ajudo com a sacola. Pode vir. Ônibus cheio, hein? Quando eu entrei, ainda estava bem vazio. Isso. Agora a senhora senta aqui um pouco pra descansar. Se importa de bater um papo? Não gosto muito de silêncio. Estou cada vez mais cansada de tanto ser sozinha. A senhora tem filhos? Eita. Já tem até netos? Maravilha. Sabe que eu estou vindo de uma consulta no hospital? Quero engravidar de novo.



*Maria Amélia Elói nasceu em 1973 em Taguatinga, DF. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra “Poesia torta”. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé/MEC pelo ensaio “Ideias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000″. Em 2016, publicou o livro de crônicas “Um milagre para cada corcova”, pela Editora Penalux. Em 2017, participou da antologia de contos “Novena para pecar em paz,” também pela Editora Penalux. É integrante dos coletivos Mulherio das Letras e Instituto Casa de Autores. Há 15 anos, é servidora da Câmara dos Deputados, onde desenvolve projetos culturais.




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