Postagens

Mostrando postagens com o rótulo Divina Leitura

Divina Leitura | O fragmento em "Orelha lavada, infância roubada" de Sandra Godinho

Imagem
  Coluna 06 O fragmento em Orelha lavada, infância roubada   de Sandra Godinho - por Divanize Carbonieri Lendo Orelha lavada, infância roubada (2018) de Sandra Godinho, me lembrei da seguinte frase do dramaturgo Heiner Müller: “Não acredito que uma história que tenha ‘pé e cabeça’ (a fábula no sentido clássico) ainda seja capaz de dar conta da realidade” (MÜLLER apud SARRAZAC, 2002, p. 89). É uma defesa do fragmento, que Müller entendia como a estética apropriada para a era pós-moderna, em que qualquer sensação de totalidade tornou-se inviável. Na verdade, Müller também afirmava que a tarefa da arte é tornar a realidade impossível. Pelo menos, a realidade que se supõe coesa, contínua, homogênea. Para a realidade estilhaçada por meios de comunicação de massa e de transporte cada vez mais rápidos, a única forma de apreensão é mesmo fragmentária. De acordo com Ingrid Koudela (a partir de Ruth Röhl) (2006, p. 29),   [uma das funções do trabalho com fragmentos de Müller] é a de [...

Divina Leitura | As multiplicidades de "Santuário" de Maya Falks

Imagem
  Coluna 05 As multiplicidades de Santuário de Maya Falks - por Divanize Carbonieri       O primeiro aspecto que me chamou a atenção ao ler Santuário (Macabéa, 2020) de Maya Falks foi a questão do gênero. A princípio, julguei se tratar de uma novela, levando em consideração a definição clássica presente em Massaud Moisés (2000): narrativa episódica, constituída por uma pluralidade de células dramáticas com diversos conflitos – ao contrário do romance, que, mesmo podendo ter vários conflitos, apresentaria uma célula dramática principal, aquela do protagonista. Além da pluralidade dramática, a novela, segundo Moisés, ainda seria caracterizada pela sequencialidade, com as células dramáticas se organizando numa sucessão, com cada episódio contendo começo, meio e fim em si mesmo, geralmente numa ordenação cronológica dos eventos ficcionais. E aqui surge talvez a primeira dificuldade para entender o livro de Falks apenas como uma novela: os eventos não se organizam em ordem cronoló

Divina Leitura | Vitória por nocaute em "Não presta pra nada" de Marta Cocco

Imagem
  Coluna 04 Vitória por nocaute em Não presta pra nada de Marta Cocco - por Divanize Carbonieri   Não presta pra nada (2016) de Marta Helena Cocco é um livro delicioso. Em tramas bem elaboradas com os fios de diferentes falares, a autora criou tipos humanos peculiares, pessoas muito parecidas com aquelas que conhecemos na realidade. São treze contos, todos com protagonistas mulheres (a exceção é “O regresso”, em que o marido parece ter tanta relevância para o enredo quanto a mulher, talvez até um pouco mais). Ainda que as histórias se refiram, em sua maioria, a situações tristes ou melancólicas, muitas delas são permeadas de humor. Trata-se de um humor reflexivo e dolorido, uma conscientização irônica das dores do mundo. Em relação à temática, é possível perceber três eixos principais: as relações familiares, a assimetria no relacionamento entre homens e mulheres (resultando muitas vezes em violência) e a destituição social. As relações familiares retratadas são norteadas por um cert

Divina Leitura | O processo de morrer em "Alguém pra segurar a minha mão" de Giovana Damaceno

Imagem
  Coluna 03 O processo de morrer em Alguém pra segurar a minha mão de Giovana Damaceno - por Divanize Carbonieri   Não sei redigir resenha sobre livro-reportagem. Não vou fingir que sei. Não tenho nem mesmo certeza quanto ao termo correto. Será que o melhor não seria dizer “jornalismo literário”? Se estou usando conceitos ultrapassados, peço desculpas. Mas quero escrever sobre o livro de Giovana Damaceno, Alguém pra segurar a minha mão (Penalux, 2020), porque foi uma leitura que me tocou. Quando pensei em criar esta coluna, “Divina Leitura”, o que tinha principalmente em mente era apresentar às leitoras livros de que tivesse gostado e incentivar novas leituras. Aqui não tenho objetivos acadêmicos, que reservo para outras instâncias das minhas atividades. É claro que, após tantos anos na academia, é quase impossível que um texto meu não venha a ser contaminado por algum academicismo. Mas, nesta coluna, quero realmente escrever de forma mais acessível e fluida. E esses são os

Divina Leitura | "Made in Brasil": o romance transcultural e translígue de Sílvia Schmidt

Imagem
  Coluna O2 Made in Brasil : o romance transcultural e translígue de Sílvia Schmidt _ por Divanize Carbonieri     Made in Brasil (2019) de Sílvia Schmidt é um livro intrigante. A princípio parece ser escrito dentro de um ultrarrealismo. A impressão que temos é a de que Sofia, a protagonista, poderia ser uma amiga nossa cuja história nos é contada por uma terceira pessoa, uma outra amiga talvez. A história se passa em 2003 e relata a viagem de Sofia da Inglaterra para os Estados Unidos para ajudar o irmão e a cunhada grávida. Os eventos ficcionais e a forma aparentemente despretensiosa com que são narrados se assemelham às histórias de viagem que certamente já ouvimos de várias pessoas. Os diálogos, bastante presentes, também são muito similares às falas que mantemos em situações parecidas:   _ Meu irmão, que voo magnífico eu fiz! Cortar o Atlântico e todos estes estados em uma única viagem, deixando o Reino Unido tal qual uma formiguinha lá para trás, é realmente a forma m

Divina Leitura | A força vital da madeira: uma leitura de "Coração Madeira" de Marli Walker

Imagem
  Coluna 01 A força vital da madeira: uma leitura de Coração Madeira de Marli Walker - por Divanize Carbonieri   Coração Madeira (2020) de Marli Walker é a história de uma travessia. A protagonista, chamada de Filha do Meio e, posteriormente, de Coração Madeira, deixa o interior do Sul do país em direção ao sertão do Norte de Mato Grosso, num momento em que muito da mata nativa ainda existia, mas já estava em pleno processo de derrubada. É uma trajetória individual e, mais do que isso, de individuação, de uma mulher que se descobre senhora da própria vida em meio aos caminhos e descaminhos trilhados. Mas também é uma jornada que serve de paradigma para a de levas e levas de migrantes sulistas rumo à região Centro-Oeste. Dessa forma, o micro está contido no macro e vice-versa, numa interessante relação entre a parte e o todo. Uma espécie de mecanismo de zoom aplica-se na narrativa, permitindo que a leitora se aproxime e se afaste desse panorama complexo. A principal particularid