Para não dizer que não falei dos cravos 11 | A poesia de JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

 

Para não dizer que não falei dos cravos (11)


A poesia de 

JOSÉ INÁCIO 

VIEIRA DE MELO 


Quatro poemas de "Garatujas Selvagens"

capa do livro Garatujas selvagens 


OFÍCIO 

Cunhar abalos sísmicos,
eis o meu ofício. 

Mergulho no sonho
e vou ao mais profundo 
em busca do incriado.

E como é estranho 
o luminoso minério 
que surge assim precipitado.

Para não me cegar
com a ensimesmada joia,

que atravessa diamantes
numa onda de amálgamas 
espelhados,

esfrego-a no corpo,
cautério que toca na alma 
espalhando brasas.

E brotam versos vivos,
sorrisos suados,
lágrimas talhadas.

(p. 21)

-*-


SOLUÇÃO 

A solução para tantas palavras
é apagar delas o sentido.

E partir da intacta inocência 
quando ainda tudo era nada.

E sentir a poesia
despertar o silêncio 
até chegar ao outro,
inventando nexos.

O humano é demasiado
e necessita inscrever
no corpo do texto
a textura do drama.

(p. 26)

-*-


ROTA INFINITA 

Minhas palavras estão sem sono
e o silêncio grita teu nome, mar que admiro.

Com os sentidos atentos, canto aos céus, 
aguardando teus gestos se desenvolverem.
E quando chega a noite, tua estrela cresce 
na minha respiração, nas minhas veias.

A tua imagem entra pelas minhas retinas 
e acende lâmpadas nas minhas células 
e meu animal interior orvalha poesia.

E todas as sensações vibram pela caatinga
e sinto viagens que não se explicam.
O amor tem sempre rota infinita.

(p. 67)

-*-


FUGA

Para Heitor Villa-Lobos


O tempo canta uma ladainha doida
cheia de palavras de outros mundos,
dos reinos do absurdo.

Como gosto dessa reza
que vem da grota funda do universo,
moita escura de onde, de repente, 
pipocam versos e mais versos.

Aí é tudo luz na minha roupa
e a minha alma se veste do eterno.

Escuta só essa fuga!
Esse uivo do guará da infância 
vem lá da Vila dos Lobos:

o maestro regendo o tempo,
atiçando as brasas do silêncio 
que trago no peito.

Não morre o poema que habito.

(p. 87)

-*-


● Quatro poemas de "O Filho do Sol - Antologia dos 55 anos"

capa do livro O filho do sol 



IDEOGRAMA 

Ao pé do ouvido 
a sílaba inumerável
da escrita. 

Um cata-vento assoviador
sussurra o tom da mandala
que me anima.

E sigo
traço a traço,
quilômetro a quilômetro, 

até chegar à senha
das lonjuras.

Légua é língua de estrada,
régua estendida
ao desconhecido dicionário, 

o intacto vilarejo
onde libérrimas éguas parem,
na boca da noite,

velocíssimos vaga-lumes
que se espalham
no firmamento 

a compor o ideograma
do Universo. 

(pp. 17-18) 

-*-


A MORTE PROMETE JARDINS

Este teu brilho de agora
são cacos - rastros errantes
que persostem na busca inútil 
da tua primeira semente. 

Este teu brilho de agora 
é a sombra do que foste,
e se ainda és girassol celeste
é que a morte promete jardins.

(p. 37)

-*-


A ROSA VIVA

Estas rosas que vês em mim são brasas.
Por isso, muito cuidado ao tocar 
em suas pedras - pétalas sagradas.

Minhas palavras ardem a forjar
estas flores que canto por prazer
e que dão febre e fazem delirar.

Meu coração é mesmo a rosa viva.
Por isso, muito carinho ao pegar 
suas pétalas  - pedras tão aflitas.

(p. 65)

-*-


CALIGRAFIAS

I

Na poeira de um tempo impreciso
as histórias do silêncio, 
ninhadas de signos sem tradução. 

Silêncio na carne.
Silêncio que sente a areia passar. 
Tempo para a solidão do poema.

Cultivamos os nomes.
Criamos semblante para cada nome.
Para mostrar nossos nós - a palavra.

Com os olhos marejados 
a vertigem cresce:
suas roupas são de luz e de som.

O pasmo nos sobressalta
e gozamos de tudo.

II

A poesia de um tempo sem ciso
e sua estranha ninhada de histórias 
das entranhas do silêncio. 

Nosso heroísmo é trágico 
e as parcas são infinitas.

Temos apenas a ilusão das coisas
e o caminho é irreversível. 

Retornar - apenas para o Nome,
para o ser que não tem nome.

(pp. 85-86)

-*-

fotografia do arquivo pessoal do autor 


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO é natural de Alagoas e reside na Bahia. É jornalista, produtor cultural e poeta. Foi coeditor da revista literária "Iararana" de 2004 a 2008. Foi coordenador e curador de diversos eventos literários, como, por exemplo: "A Voz do Poeta" (Salvador, 2001); "Poesia na Boca da Noite" (Salvador, 2004 a 2007); "Uma Prosa Sobre Versos " (Maracás, 2009 a 2014); "Praça de Poesia e Cordel" (9a., 10a. e 11a. Bienal do Livro da Bahia, Salvador, em 2009, 2011 e 2013, respectivamente); "Cabaré Literário" (I Feira Literária Ler Amado, Ilhéus,  2012); e "Flipelô - Festa Literária Internacional do Pelourinho" (Salvador, de 2017 a 2023). Entre 2020 e 2021 foi curador e apresentador da série de saraus virtuais "Poesia na Boca da Noite", no Instagram, com a participação de diversos(as) poetas. Possui poemas traduzidos para o alemão,  árabe,  espanhol,  finlandês, francês,  inglês e italiano.

Livros publicados: Códigos do Silêncio (Salvador: Letras da Bahia, 2000); Decifração de Abismos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2002); A Terceira Romaria (Salvador: Aboio Livre Edições, 2005, Prêmio "O Capital 2005"); A Infância do Centauro (São Paulo: Escrituras Editora,  2007); Roseiral (São Paulo: Escrituras Editora,  2010); 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (antologia, Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2011); Pedra Só (São Paulo: Escrituras Editora,  2012); O Galope de Ulisses (antologia, São Paulo: Editora Patuá, 2014); Sete (Rio de Janeiro: 7 Letras,  2015, "Prêmio QUEM 2015" da Revista Quem, Editora Globo, categoria Literatura - Melhor Autor); Entre a Estrada e a Estrela (Rio de Janeiro: Mórula Editoral, 2017); Garatujas Selvagens (Cajazeiras: Arribaçã Editora, 2021, "Prêmio de Poesia Hilda Hilst 2021" da UBE - União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro); O filho do Sol - Antologia dos 55 Anos (antologia, Itabuna: Mondrongo, 2023).

CDs de poemas: A Casa dos Meus Quarenta Anos (Salvador: Aboio Livre Edições, 2008); Pedra Só (Salvador: Aboio Livre Edições, 2013).

Participação em antologias e coletâneas nacionais e internacionais: Pórtico Antologia Poética I (Salvador: Pórtico Edições,  2003); Sete Cantares de Amigos (Salvador: Edições Arpoador, 2003); Concerto Lírico a Quinze Vozes - Uma Coletânea de Novos Poetas da Bahia (Organizador, Salvador: Aboio Livre Edições, 2004); Voix Croisées: Brésil-France (Marselha: Autre Sud, 2006); Roteiro da Poesia Brasileira - Anos 2000 (São Paulo: Global, 2009); Sangue Novo - 21 Poetas Baianos do Século XXI (Organizador, São Paulo: Escrituras Editora,  2011); Impressioni d'Italia - Piccola Antologia di Poesia in Portoghese con Traduzione a Fronte (Nápoles: U.N.O., 2011); En la Otra Orilla del Silencio - Antologia de Poetas Brasileños Contemporáneos (Cidade do México: Unam/Ediciones Libera, 2012); Traversée d'Océans - Voix Poétiques de Bretagne et de Bahia (Paris: Éditions Lanore  2012); A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo, 2013); Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Review, 2013); Autores Baianos: Um Panorama 2 (Salvador: P55 Edição, 2014); Concerto Lírico - 15 Poetas 15 Anos Depois (Guaratinguetá: Editora Penalux,  2019); Orillas de América Literaria - Poesía Brasileira Contemporánea (Cachoeira: Portuário Atelier Editorial, 2020); Poemas de Amor e Guerra (Rio de Janeiro: Villa Olivia, 2020); Tudo é Sempre Despedida - 50 Poetas Brasileiros Contemporâneos (Maputo, 2022).









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