Pés Descalços 01 | Menino ou Menina

 


Menino ou Menina


Quem me conhece sabe que gosto de contar histórias, em especial, da minha vida. Acho que herdei isto da avó paterna, amada vovó. Mas, às vezes, ela me deixava confusa. Dizia que eu tinha uma natureza forte, menina braba e, lá vinha a ladainha de sempre, com a mesma história dizendo “Quando sua mãe foi para o hospital, ter o seu irmão Ivan, ela deixou você em meus cuidados, você acordou no meio da noite querendo a sua mãe e eu disse que ela não estava, mas que a vovó estava ali. Você não quis saber de mim e deu um tapa em minha cara.”. Escutei esta história desde os dois anos de idade até a fase adulta.
Fui uma criança que dificilmente aceitava as coisas facilmente, ainda mais quando a mãe queria me colocar para cuidar dos irmãos mais novos e ter que cozinhar para a família. Sempre achei que fazer os serviços domésticos tirava a minha liberdade. Era uma tortura. Deixar de subir em árvores, de finca finca no chão, rolimã, construir casinhas com tranqueiras velhas, pular, saltar, rodopiar, desenhar no chão, construir cidades para as tucuras. Que delícia era o brincar!
E lá vinha a avó dizendo “você não se comporta igual a sua irmã Ivone! Parece uma menina machofêmia!”. Pedia desculpas a ela dizendo que iria me comportar. Mas no dia seguinte estava eu de novo com o mesmo comportamento de sempre.
Na infância, sempre achei lindas as princesas e muitas vezes queria ser igual elas. A minha irmã Alzira tinha um vestido verde claro, rodado, com várias rendas em voltas. Um presente que ela ganhou do padrinho. E que presente era aquele. Ela vivia brigando comigo, era só um descuido e lá estava eu vestida com ele; de princesa.
Mas, também, não resistia de usar uma calça marrom, de bolsos, que o meu irmão Ivan ganhou. Achava o máximo, uma calça com bolsos. Ainda mais quando iria brincar de rolimã na decida da rua. Que magia tudo aquilo com as pernas pra cima.
Consegui brincar com os meninos por igual; acho... Apesar que o meu irmão Ivan, às vezes, queria me tirar de cena, das brincadeiras com os meninos, ainda mais quando se tratava de futebol. Mas eu não desistia.
Nas brincadeiras de infância não me lembro de ter algum menino apaixonado por mim. Exceto na escola. Eu não entendia bem o porquê conseguia despertar essas paixões. Não tive o privilégio de poder brincar com os meninos, na escola. Mas lembro bem que de vestido, às vezes, eu poderia ir. Aquele da minha irmã Alzira. Mas de calças era só para os meninos. Como os uniformes escolares daquela época. Meninas só de saias.
Quando eu assisto ao filme “Guerra dos Botões” faz lembrar da infância. O amigo da protagonista se apaixona por ela depois que a vê em um vestido, branco, rodado e todo rendado. E os inimigos deles são derrotados quando a veem, assim, de saia. Uma questão de gênero!?...


Tons de Café. Neide Silva.



Escrever é um desafio pra mim, um instrumento, poder de representatividade sociocultural. Resgatar minha história é ficar em um lugar de escuta, desmistificando a marginalização de pessoas que vêm da periferia. Como se tivéssemos de viver na comodidade, em que, da periferia não nascem escritores ou a falta de capacidade de intervir no mundo, tanto político quanto cultural.

Espero poder estar contribuindo, nesta coluna, com possibilidades de diálogos sobre o nosso ser no mundo.




Comentários

  1. Muitas meninas,mulheres identificam-se com você, nessa sociedade patriarcal. Belo texto!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

Cinco poemas de Catita | "Minha árvore é baobá rainha da savana"

UM TRECHO DO LIVRO "NEM TÃO SOZINHOS ASSIM...", DE ANGELA CARNEIRO | Projeto 8M

A vendedora de balas - Conto

Poetas italianas: Miriam Maria Santucci e Francesca Patitucci

Jeovânia P. comemora um ano do seu canal e selo Literatura Feminina

Isabel Furini e Sonia Cardoso: Dia do poeta