A PROSA E A POESIA DE MARIA VALÉRIA REZENDE | Projeto 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Viaje pela palavra múltipla - em prosa, poesia ou hai-cai - da imensa escritora MARIA VALÉRIA REZENDE:

CLICHÊ

Esta história só poderia começar no ponto em que começa porque já se sabe que as famílias felizes não têm história. 

Fernando achava sua família uma das mais felizes, até chegar, ontem, como sempre, por volta do primeiro intervalo da novela das oito, levemente enfadado, levemente embriagado, direto da happy-hour prolongada para o jantar que a mulher já deveria mandar servir. Mas em lugar de estar à sua espera, enfiada no penhoar de grife, diante da televisão de 60 polegadas, ela estava de pé, vestida quase a rigor, e uma fileira de malas daquela marca francesa, no meio da sala. Recusou o beijo automático do marido e disse:

- Até que enfim você chegou! Eu não queria levar a chave e estava esperando só pra lhe entregar. Estou indo embora.

- Como indo embora? Como não me disse que ia viajar? Morreu alguém, há algum parente seu muito doente, pra você ter de viajar assim de repente?

- Não, meu filho, o que morreu foi o nosso casamento.  Vou-me embora para sempre.

- Como morreu? Sempre fomos tão felizes juntos!

- Você é que pensa. Aguentei demais.  Agora chega!

- Mas aguentou o quê?

- Esse seu beijo com cheiro de cerveja, de uísque, todo dia, a essa hora.

- Não acredito que isso seja razão para uma decisão dessas. Chego, dou-lhe um beijo rápido, me enfio no banheiro, escovo os dentes, me banho, me barbeio de novo e venho jantar todo perfumado como pra um restaurante francês, e você vai alegar isso pra separar de mim?

- Vou.

- E as crianças?

- Que crianças? Aqueles dois marmanjos que chegam em casa todo dia e vêm me beijar com cheiro de cerveja ou uísque? Quando eles voltarem das férias em Dubai você avisa pra eles que eu fui-me embora. 

- Não acredito que você vai embora, vai abandonar sua família que lhe dá o que você quer e ainda a enche de carinho.

- Pois é, não aguento mais o cheiro desses carinhos.

- Mas esse cheiro, vá lá, por pior que seja, não dura nem 30 segundos. 

- Pois é... água mole em pedra dura, tanto pinga...

O resto da frase foi abafado pela buzina do táxi especial esperando lá fora. 

(* conto integrante da coletânea Mulherio das Letras Contos & Crônicas volume III)

imagem do Pinterest 
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CADA NOITE

Quando mamãe me dizia boa noite, fechava a porta e apagava a luz pelo lado de fora do quarto, dorme, Maninha, fecha os olhos e dorme, encolhia-me por debaixo das cobertas, cobria a cabeça, buscando a proteção do escuro absoluto, deixando lá fora, na penumbra coada pelas frestas da janela, os fantasmas, os morcegos, os escorpiões, o papa-figo, o vampiro, a bruxa, o pirata Cavendish, o homem da capa preta e tudo o mais que me assombrava cada noite. Então, sem medo do mundo, adormecia, cansada da escola, do dever de casa, das tarefas domésticas, do pique-esconde, do jogo de damas e de xadrez-chinês, até que o dia claro me despertasse. Assim era, no inverno.

No verão, ah!, no verão era diferente. O verão era em Minas, no casarão dos meus avós. 

Passava os dias desocupada, zanzando pelos muitos cômodos da casa e perdendo-me nos vastos espaços cobertos pelo matagal do quintal de minha avó, horas despreocupada como menina quase moleque, segundo me diziam que eu era, quando lhes interessava: Imagine, Maninha, não vai não, você ainda é uma criança!, escalando as mangueiras, arreliando meu irmão menor, metendo o dedo no tacho de goiabada ainda quente, vestindo e despindo a boneca.

Outras horas, era a moça que também me acusavam de ser, Maninha, não faça isso, você já é uma moça!, despindo-me e vestindo-me à frente do espelho do guarda-roupa de tia Laurinha, enquanto ela ia trabalhar no banco, experimentando todas as roupas e enfeites dela e depois debruçada, assim linda, à janela pra esperar que ele, qualquer ele que pudesse calhar, passasse e me visse.

Ele passava e nem olhava e eu me largava na rede da varanda pra chorar lágrimas sem fim, uns arrepios estranhos me remexendo por dentro, ninguém liga pra mim, ninguém me ama, sou horrorosa, qualquer dia desses eu morro, eu fujo e então eles vão ficar doentes de remorso, e depois cansava de chorar e inventava um novo capítulo da novela em que há um homem lindíssimo, maravilhoso e muito malvado que me persegue e quer me levar com ele e eu estou apaixonada por ele, mas só vou quando ele se arrepender das maldades e ficar bom como pão.  Daí eu chorava mais um pouco, esperando o entardecer, ou pegava Alguma poesia do Drummond, que eu queria ler só pra contrariar, porque meu avô de vez em quando folheava e dizia Imagine, esse menino Drummond, tinha uma pedra no meio do caminho, isso lá é poesia? Poesia é Castro Alves, auriverde pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança.  Eu lia, nem entendia muito bem, mas ia entristecendo mais um pouco. 

Ao entardecer me dava uma tristeza azul e muito comprida, mas eu preferia que ela durasse muito e eu não tivesse que ir logo pra cama, porque era verão. 

No verão, a cada noite, quando vovó me dizia durma bem, fechava a porta e apagava a luz pelo lado de  fora do quarto, eu tinha de escolher entre sufocar-me no calor com a cabeça escondida sob as cobertas ou desobrir-me e tremer de medo diante daquele vulto escuro que nunca faltava, que me fascinava e me apavorava movendo-se pra perto de mim e de novo se afastando, por horas, até que o desespero me levasse ao extremo da coragem pra saltar da cama, correr pra porta, quase roçando na horrível figura do homem malvado, abri-la com um safanão e acender a lâmpada pra descobrir, mais uma vez, que o monstro era apenas a capa de gabardine escura e o velho chapéu de feltro de meu avô, dependurados num prego atrás da porta.

(* conto do livro A face serena)

capa do livro A face serena
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ONDAS E PLANOS

Eu caminhava firme sobre as ondas, ondulações brancas e pretas do afeto, do ciúme, do desejo, do medo, da certeza, da insatisfação, da esperança, da insinuante dúvida. 

A regularidade e a harmonia com que se sucediam as ondas brancas e pretas, a perder de vista, e a mão dele apertando a minha, mantinham-me em segurança, o passo leve e decidido, prudente e ousado pelas calçadas de Copacabana. 

A vida prometia-nos tudo e "vinha em ondas, como o mar".

Nunca compreendi como foi que, um dia, embaralharam-se as ondas até condensarem-se, em planos perfeitamente separados, o branco e o preto, o preto contínuo da solidão, o liso branco do esquecimento.

(* conto do livro Histórias nada sérias - Clube do Conto - Tema: Calçada)


capa do livro Histórias nada sérias 
-*-

coral de passarinhos
já, já clareia o dia
eu me espreguiço

(* hai-cai do livro Ninho de haicais)

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errei na medida
fiz um sonho muito longo
pra uma noite curta

(* hai-cai do livro Ninho de haicais)

-*-

viajo por terra -
voos, prefiro mil vezes
os da imaginação 

(* hai-cai do livro Ninho de haicais)

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em corda bamba
saltam saudade e recados
na linha do horizonte 

(* hai-cai do livro Ninho de haicais)

-*-

Deus escreve torto:
viro a cabeça de lado,
recupero as retas

(* hai-cai do livro Ninho de haicais)


capa do livro Ninho de haicais
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do mourão da cerca
coruja levanta voo
e inaugura a noite

(* hai-cai do livro Haicais inéditos e reedições)

-*- 

no alto do barranco 
a cerca divide o céu 
com arame farpado 

(* hai-cai do livro Haicais inéditos e reedições)

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o vento calou-se -
inesperado silêncio 
faz-me despertar

(* hai-cai do livro Haicais inéditos e reedições)

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pernoitei no campo
não pude dormir de medo 
do imenso silêncio 

(* hai-cai do livro Haicais inéditos e reedições)

capa do livro Haicais inéditos e reedições 
-*- 


Meu avô quebrava pedras
a golpes de picareta
de sol a sol
eu lhe trazia a quartinha de água fresca
e lhe tocava as costas
as costas de meu avô eram pedra

a pele de meu avô
de sol a sol
tinha cor de sola e terra
o braço de meu avô
alongado em pau e ferro 
rompia a pedra

meu avô bebia da quartinha
a água doce e fresca
e deixava-me na testa 
um beijo de areia e sal

meu avô brandia a picareta
e cantava 
com ecos de caverna
com timbres de estalactites

foi-se meu avô de pedra e sola
vento terra areia mar e sal
meu avô de pau e ferro 
cumpriu-se de volta ao chão
ficamos nós
eu, os tijolos, cimento,
e a ventania no andaime

(* poema do livro Miscelânea)

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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


MARIA VALÉRIA REZENDE é natural de Santos/SP, e vive em João Pessoa/PB desde 1988. Em 1965 entrou para a Congregação de Nossa Senhora  - Cônegas de Santo Agostinho.

É graduada em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, e em Pedagogia pela PUC/SP. Mestre em Sociologia pela UFPB. Dedicou-se desde os anos 1960 à Educação Popular, em várias regiões do Brasil e no exterior.

Participa do Clube do Conto da Paraíba desde 2004. Escreve ficção, poesia, contos, crônicas e romances, também é tradutora. Faz parte do Movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017.

Livros publicados: Vasto mundo (Editora Beca, 2001, Editora Alfaguara/Objetiva, 2015 e França: Editora Anacaona, 2017); O voo da guará vermelha (romance, Editora Objetiva, 2005, Editora Alfaguara, 2014, 2a. ed.); Modo de apanhar pássaros a mão (Objetiva, 2006); Conversa de passarinhos (haikais, com Alice Ruiz, Iluminuras, 2008); No risco do caracol (infantil, Editora Autêntica, 2008, Prêmio Jabuti 2009); Histórias daqui e d'acolá (contos, Editora Autêntica, 2012); Hai-quintal - haicais descobertos no quintal (haicais, infantojuvenil, Autêntica, 2012); Ouro dentro da cabeça (romance juvenil, Editora Autêntica, 2012, Prêmio Jabuti  2013); Vampiros e outros sustos (contos, Editora Dimensão, 2014); Uma aventura animal (juvenil, contos, Editora Dsop, 2014); Quarenta dias (romance, Editora Alfaguara/Objetiva, 2014, Prêmio Jabuti Melhor Romance e Livro do Ano de Ficção 2015); Outros cantos (romance, Editora Alfaguara, 2016, Prêmio Casa de las Américas , Cuba 2017; Prêmio São Paulo de Literatura 2017; e terceiro lugar Prêmio Jabuti 2017); Histórias nada sérias (contos, Editora Escaleras, 2017); Conversa de Jardim (crônicas, com Roberto Menezes, Moinhos, 2018); A face serena (contos, Penalux, 2018); Ninho de haicais (poesia/haicais, Casa Verde, 2018); Haicais inéditos e reedições (poesia/haicais, Editora Imagística, 2019); Carta à rainha louca (romance, Editora Alfaguara, 2019); Nas curvas do caminho, um menino diferente... (infantojuvenil, Caravana Grupo Editorial, 2019); Encontros à hora morta (ficção de suspense, com Vanessa Ratton, Florear livros, 2020); Rio de sonhos (novela, Editora Lamparina, 2021); Miscelânea (poesia, Flit Edições/MVC/Forma, 2021); entre outros.






 

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