Cinco poemas de Valéria Paz | "Era vida e se quebrou"

 

Imagem de David Zydd por Pixabay. 

Cinco poemas de Valéria Paz

Era vida e se quebrou



Agulhas

às vezes um demiurgo
encontra uma veia de bom calibre
e tira um pouco de poesia
pra meu uso pessoal
de outras, apenas me fura
e me anestesia da dor das palavras



Homo inhabilis

não quero aprender nada de novo
nem ioga, nem krav maga
nem dança de salão
nem esporte radical
nem fotografia, nem jardinagem
nem fazer pão ou cerveja
nem customizar minha roupa
nem postar vídeo no youtube
nem falar mandarim
não vou acumular
outras inabilidades
ao que já não sei
ao que já me escapa
ao que já me basta
de ignorâncias inacabadas
e são muitas e são profundas
mas como não têm nada de novas
me cabem e me confortam
nesse momento de espanto
em que me perdi de mim


Imagem de Gerd Altmann por Pixabay.


Ouroboros

tem um vazio todo dia
me devorando pelas beiradas
quando chega no âmago
no centro do nada
me vomita num jorro
e começa de novo
como aquela cobra infinita
maldita com um furo no meio
ciclo da vida uma ova
porque de onde eu olho
é só destruição vagarosa
um retorno perpétuo ao oco
que transborda da minha boca



Incompatibilidade

um poema tem que ter
ritmo e circularidade
uma ideia que se cumpre
com imagens precisas
nem sempre palavras bonitas
mas de peso bem medido
e uma cadência quase cardíaca
tudo o que a vida não é
que a vida é disritmia
disfonia, miopia
assimetria, desarmonia
é essa rima pobre
que acaba abruptamente



Inventário

tenho a boca suja
olheiras definitivas
espasmos de estresse
mil filmes na ponta da língua
preguiça de arrumar a casa
que só ajeito por causa do toc
três calças jeans
muitas camisetas novas
que não tenho saído pra nada
uma impressora sem tinta
dois projetos de livro
seis garrafas de vinho
um coração remendado
um corpo meio dormente
em meia cama vazia
um silêncio absorvendo
tudo ao meu redor


Imagem de Manuchi por Pixabay.




https://www.editorapenalux.com.br/loja/era-vida-e-se-quebrou




Váleria Paz é mestre e doutora em Letras pela USP, com trabalhos sobre poesia, retórica, mídia e memória social. Foi professora e consultora de português durante 30 anos, mas se aposentou precocemente por alguns reveses da vida. Como compensação talvez, reencontrou com voracidade a poesia adormecida desde seus 20 e poucos anos e se rendeu ao cirúrgico gênero dos microcontos. Agora, aos 55 anos, seu primeiro livro brota de um mosaico de cacos.




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