DOIS CONTOS E QUATRO POEMAS DE ELIANE PANTOJA VAIDYA | PROJETO 8M

 
fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão', 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Dois contos e três poemas da incrível escritora ELIANE PANTOJA VAIDYA:


DIAS E NOITES E DIAS

Perdi a conta dos dias das noites dos dias em que sentada na poltrona olhava as amendoeiras do quintal folhas verdes no ar parado a boca seca o ventre contraído os braços sem movimento um cérebro de chumbo seria melhor lhe dar vallium teriam dito talvez ela dormisse não não tomaria nenhum remédio mas o médico mandou você vai se sentir melhor melhor como? pra quê? alguém repetira precisa tomar remédio para dormir e mãos solícitas estenderam a pílula e a água bebeu a água vozes se levantaram ao longe uma porta bateu ou foi uma janela por onde o vento seco entrou talvez rodando uma folhinha verde talvez trazendo um graveto de ninho os olhos ardem uma rede range talvez sejam as crianças na varanda chegam da cozinha sons de pratos sendo empilhados garfos colheres e facas sendo guardadas facas estremece procurara não saber detalhes que importam os detalhes ele está bem morto nunca mais passeariam ao sol de mãos dadas indiferentes ao esplendor da natureza em volta deslumbrados um com o outro na  amendoeira  vários  pardais  ensaiam  suas canções em  vários tons ah natureza indiferente aos homens nem nossa vida nem nossa morte a perturbam segue suas estações tranquila por alguns instantes penso nessa natureza imutável forte e poderosa e me sinto reconfortada como um pardal dentro dela essa mãe maior que as outras essa mãe sem preconceitos sem juízos sem críticas essa mãe totalmente amparo uma coisa rompeu aqui dentro talvez esse bolo na garganta se desfez e as lágrimas vão descendo devagarinho sem ruído molhando o rosto e os braços se cruzam em meu peito enquanto eu me vergo para  frente e para trás como se estivesse embalando criança mamãe fala graças a Deus ela está chorando! Juliana minha filha graças a Deus você está chorando! me abraça com ternura e eu sinto a casa me abraçando a vida me abraçando quente e me libertando para ser de mais ninguém só de mim mesma e das crianças na varanda e para que eu nunca mais passasse dias e noites e dias sentada na poltrona olhando as amendoeiras do quintal folhas verdes no ar pesado folhas verdes no ar parado. 

(* conto do livro Livro rosa: imitando Wittgenstein)


capa do livro O livro rosa: imitando Wittgenstein
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CONSTRUÇÃO 

Quase próximo ao rio, o terreno era plano, maravilhosamente plano.

Alguns homens já estavam a trabalhar, limpando o mato. Depois que terminassem, tudo dependeria dele, só dele. Andou a cavalo pelo terreno olhando a qualidade da terra. Depois voltou pelos mesmos caminhos observando horizontes. Quase sentia a tentação de descer do cavalo e farejar o caminho como um cão. Estava impaciente e isto era transmitido de modo nítido ao cavalo que não mostrava a pachorra habitual.

Tantos anos de experiência e ele possuía a inquietação de um iniciante! Que fazer? Ele é assim mesmo. O sangue lhe bate nas têmporas, o sol está agora mais alto.

Desce do cavalo e olha a trilha que ele e o cavalo percorreram para chegar até ali. Talvez deva ser alargada, mas ainda é cedo para dizer isto. Primeiro deve ter certeza de ser este o terreno adequado ao templo. O imperador tinha sido bastante claro “Quanto ao  templo de Vesta, você decide lugar, concepção, custos. Pense no esplendor de Roma e no renome de nosso império.” Ele se curvara em reverência de coração leve como se tivesse recebido um elogio justo.

Agora,  a responsabilidade lhe caía em cima como um gigantesco bloco. Mas, não se deixaria abater. Ele também tinha a sua linhagem. Afinal  os ensinamentos do grande Vitrúvio, arquiteto da época de Augusto, não tinham chegado até ele e não estavam cravados dentro de sua alma? Não tinha ele percorrido, passo a passo, todos os caminhos do aprendizado, sempre maravilhado com as realizações claras e belas de seus antecessores? Não tinha a linguagem da arquitetura romana, sobriedade e beleza, a bem dizer, formado seu caráter? O que havia a recear? Infelizmente tudo. Tinha tudo a recear. Uma pequena desproporção entre pedestal e coluna, um frontão mal planejado, uma pedra que não seguisse a outra de modo natural, um andamento lento demais ou pelo contrário apressado em demasia, tudo enfim, pode colocar uma obra a perder. Cada obra é única. Em cada  uma se aprende alguma coisa ou perde-se o que já se pensava ter aprendido. Ganhar ou perder! O eterno jogo. Há quantos anos está neste jogo? Há muito tempo. Jovenzinho acompanhara o pai até os limites do império ao norte e observara a construção da muralha do Imperador Adriano, um colosso de sete metros de altura, de cantaria maciça, que se estendia por mais de cem quilômetros na Bretanha. Lá naquelas regiões ermas, contemplando a muralha, embaixo de chuva incessante ele sentira o coração bater exaltado pelos feitos dos romanos. Aquela construção da qual seu pai participava estaria ali para sempre, para a eternidade. Então descobrira que queria ser arquiteto. Por pequena que fosse ele também queria a sua parcela de eternidade.

E agora ela está ali, quase ao seu alcance. O templo teria beleza, sobriedade e leveza. Leveza com pedras? Como seria possível? Mas ele também já pensara nisto. O templo terá a forma redonda. Será o único templo romano a ter o todo redondo. Será muito belo, fará justiça  a Vesta, ao Imperador e a ele, que não terá seu nome inscrito em nenhuma pedra. Como todos os antigos arquitetos de Roma, ele não precisa disto.

(* conto do livro O livro rosa: imitando Wittgenstein)

imagem do Pinterest 
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ILUMINADA MENTE

Iluminada  amante 
que com a doçura férrea 
de teus versos
me tens
cativa a mente 

(* poema do livro Iluminada MENTE)

página do livro Iluminada MENT
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NÔMADE 

Ah, nômade
Magnífica solitude inteira
Como um Tuareg
Nas areias vermelhas do Saara.
O azul único de seu turbante
Que lembra o azul violeta dos seus olhos
Evocado por Rimbaud
Poetas são tuaregues disfarçados
Seus rostos que jamais são vistos.
Olhai! No meio da nuvem de poeira
eles e suas esguias, belas e letradas mulheres.
Na tribo as únicas que podiam ler e escrever.
Foram senhores do deserto
quando eram bandidos e atacavam
Lentas caravanas de camelos
Carregados de
Seda, joias de ouro e jade.

Agora tudo acabou.
Miragem que esvaneceu.
Os ritos foram apagados
Passos de crianças nas areias.
Os ricos foram assimilados
Os pobres são mendigos na Argélia,
Niger, Burquina Faso, Mali e Líbia
As jovens se prostituem
Os pobres que tem algum talento
fazem pequenas esculturas de madeira
que vendem nas portas de hotéis.
Vendem seu exotismo para estrangeiros
que jamais compreenderiam
sua visão da vida.

(* poema apresentado em 'Congresso de Filosofia' na UERJ, 2021) 

imagem do Pinterest 
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CANTO 0

Estamos juntos olhando da velha ponte
gaviões que voam alto
e gatos de Istambul

Amor é dar e receber
o mesmo que foi dado

Nem sempre as contas fecham
perde o latim e as rimas
que assim por sina 
só pena
como penou o velho gajo

(* poema do livro Cantos)

capa do livro Cantos
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CANTO -1

Sonhei um Cristo crucificado
era branco era negro era índio bronzeado
era mulher e era gay
os que sempre são culpados
Sonhei um Cristo crucificado
era branco era negro era índio bronzeado
era mulher e era gay
os que sempre são culpados
Sonhei um Cristo crucificado
era branco era negro era índio bronzeado
era mulher e era gay
os que sempre são culpados
Sonhei um Cristo crucificado
era branco era negro era índio bronzeado
era mulher e era gay
os que sempre são culpados
Sonhei um Cristo crucificado
era branco era negro era índio bronzeado
era mulher e era gay
os que sempre são culpados

(* poema do livro Cantos)

imagem do Pinterest 
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


ELIANE PANTOJA VAIDYA é natural de São Luís/MA e viveu grande parte de sua vida no Rio de Janeiro/RJ, onde foi professora de Física Teórica. Foi doutoranda em Cosmologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. 
A partir de 2009 passou a residir em Teresópolis/RJ, onde se formou em História pela UNOPAR. 
Retornou ao Rio de Janeiro/RJ em 2018. No mesmo ano e no ano seguinte fez palestras no Youtube e Facebook sobre poesia e literatura. Participou de inúmeras antologias e coletâneas. 

Livros publicados: Iluminada MENTE (poesia, Blocos, 1993); Sobrexistências (poesia); Gregos, Romanos, Orientais e alguns homens a mais (poesia, Blocos,  1997);  Três  contos (contos, Teresópolis); O barco bêbado (peça teatral, com Leila Micollis); O livro rosa: imitando Wittgenstein (ebook, contos, Clube de Autores, 2017); A paixão de Ana O. (ebook, romance policial, 2017); Pede o desejo (poesia, Chiado Books, 2018); Poesia e catástrofe (poesia, Galileu Edições, 2022); Guimarães Rosa: a ficção à beira do abismo: pequeno estudo de 'Meu tio o iauaretê' (Galileu Edições, 2022); Cantos (ebook, poesia, Terra Redonda Editora, 2023); O livro negro: contos desprezíveis (contos, Arribaçã,  2023); entre outros. Também possui i
néditos de contos, contos infantis, pequenas peças teatrais e um livro de terror.




 



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