A POESIA MARCANTE DE VERA LÚCIA DE OLIVEIRA | Projeto 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Mergulhe na poesia profunda, sutil, marcante, de VERA LÚCIA DE OLIVEIRA:


A POESIA DÓI DENTRO DE MIM

A poesia dói dentro de mim 
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos

(* poema integrante do livro A porta range no fim do corredor)


-*-


PEDAÇOS 

Estou estilhaçada
silêncios saem da boca
mansos 
estava desenhando 
palavras
perdi o jeito de amanhecer
tenho tantos pedaços 
que sou quase infinita

(* poema integrante do livro Geografias de sombra)


-*-


NEGAÇÃO

a poesia não serve
carrego dentro
um mundo que não nomeio
tudo que não posso dizer
não nasce
perfuro superfícies
suaves
muda me construo
melhor mas sou
gente
e minha negação
é essa vontade
de virar palavra

(* poema integrante do livro Pedaços)


-*-


A HISTÓRIA 

o corpo de um torturado
escava através dos séculos
sua intensidade de dor e morte
mas Deus, para quem não existe a história
como atura o horror
desse instante
onde só o que muda é a boca
que grita?

(* poema integrante do livro Tempo de doer)


-*-


DE CASEBRES

de casebres
era feita a infância
de paredes brancas
de quintais inchados de pássaros
e uma dor lenta
nalgum lugar
que nem mãe nem pai
sabiam de noite ninar

(* poema integrante do livro Uccelli convulsi)


-*-


AS COISAS

Achava que as coisas dentro dos livros
eram mais verdadeiras do que fora
que as coisas nos livros e as pessoas
estavam no lugar certo e se destoavam
era só para depois retomarem o lugar
exato em que deveriam estar

(* poema integrante do livro No coração da boca)


-*-


SEMPRE

fui sempre
de percorrer na carne
          o puído dos vãos
sempre de por o pé
          na intimidade
          das veias
sempre de lavrar
          os dias mais 
          ferozes 
                        para que doendo 
          amansem a morte

(* poema integrante do livro Entre as junturas dos ossos)


-*-


A POESIA É UM ESTADO DE TRANSE 

a poesia é um estado de transe
a poesia é um estado com Deus
quando tem hora em que Deus nos visita
a casa se enche de tudo quanto
Deus carrega consigo no seu útero

(* poema integrante do livro A poesia é um estado de transe)


-*-

esse cão que me segue
é minha família, minha vida
ele tem frio mas não late nem pede
ele sabe que o que eu tenho
também divido com ele
ele é meu irmão
ele é que é meu dono

(* poema integrante do livro O músculo amargo do mundo)


-*-


ATRAVESSAR CADA CORPO 

atravessar cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência 
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se vive e onde se fenece
e ser esse morar e entrar nesse morrer

(* poema integrante do livro Minha língua roça o mundo e da Antologia de Poesias Mulherio das Letras)


-*-


A PAZ É PASSO

a paz apara espinhos dos cílios
unhas das solas dos sapatos
a paz é leve mansa materna
se prostra por sobre os corpos
recolhe os mortos não chorados
escorre de olhos que não voltam
vaga no vento roçando trincheiras e guetos
ferindo-se nas cercas e muros de fronteira 
a paz é passo, sopro de infinito
canto de quintais e pássaros 
pomares de voos famintos

(* poema integrante da I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz)


-*-


país de palha
onde me fiz
em beirada de cama
vendo o pai morrer
levou de mim
o que nem me deu
nessa dor comida
com garfadas de feijão 
com arroz
país de estopa que a mãe alvejava
e no branco aberto muitos dos
pássaros me ensinaram a voar
país de grama e terra molhada
país de arame farpado
que nos enrolou a língua 
país de facas apertadas
nessa garganta limpa

(* poema integrante da Colectânea Mulherio das Letras Portugal Poesia)


-*-


há casas que se mudam
fazem as malas e somem
deixam panos quarando fora
para que não se pense que partiram
deixam o tapete na porta
não partem aos poucos
levando uma parte por vez
vão-se de abrupto
quando se abre a porta
e já não há mais ninguém

(* poema integrante do livro Tempo suspenso)


-*-


SANTINHAS DE RUA

(Para Maria Valéria Rezende e as santas anônimas de Quarenta Dias e de nosso país) 


deixou o livro aberto
e elas foram saindo
essa Maria Degolada 
em busca do seu pescoço 
a Sãozinha que se foi cedo
a Francisca retirante menina
a Zelima esperando seu filho
num saguão de pronto socorro
e as avós exiladas por amor
como andorinhas sem ninho
que despencam de frio no
asfalto aflito de junho
queriam ter vida
serem relidas
vagar antes que se fechasse o livro
e voltassem para o abrigo do papel

(* poema integrante da Coletânea A Obra de Maria Valéria Rezende - Resenhas e Variações)


-*-

(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.

fotografia do arquivo pessoal da autora 


VERA LÚCIA DE OLIVEIRA (Maccherani) é natural de Cândido Mota/SP e reside em Perugia/Itália. É professora, doutora de Literatura Portuguesa e Brasileira, na Università degli Studi di Perugia (Itália). Recebeu diversos prêmios, entre os quais: 'Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras', 2005, com o livro A chuva nos ruídos; 'Prêmio Internacional de Poesia Pasolini', em Roma, 2006; 'Prêmio Literatura para Todos, em Brasília, 2006.

Publicou diversos ensaios acadêmicos, entre eles sua tese de doutorado, que deu origem ao livro Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, de 2002. É organizadora de diversas antologias publicadas no Brasil e na Itália, e tradutora de poesia brasileira para a língua italiana. 

Livros publicados: A porta range no fim do corredor (poesia, São Paulo/SP: Scortecci, 1983); Geografie d'ombra - Geografias de sombra (poesia, Veneza/Itália: Fonèma, 1989); Pedaços/Pezzi (poesia, Cortona/Itália: Editrice Grafica L'Etruria, 1992); Tempo de doer/Tempo di soffrire (poesia, Roma/Itália: Antonio Pellicani Editore, 1998); La guarigíone (poesia, Senigallia/Itália: Edizione La Fenice, 2000); Uccellí convulsí (poesia, Lecce/Itália: Pietro Manni Edizioni, 2000); Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro (ensaio, São Paulo/SP: UNESP, 2002); No coração da boca/Nel cuore della parola (poesia, Bari/Itália: Adriatica Editrice, 2003; São Paulo/SP: Escrituras, 2006); A chuva nos ruídos (antologia póetica, São Paulo/SP: Escrituras, 2004); Verrà l'anno (poesia, Milano/Itália: Fara Editore, 2005); Entre as junturas dos ossos (poesia, Literatura para Todos, Brasília/DF: Ministério da Educação, 2006); Il denso delle cose (antologia póetica, Lecce/Itália: Besa Editrice, 2007); Partenze (antologia póetica, 2009); Radici, innesti, diramazioni (poesia, com Gladys Basagoitia Dazza, Roma/Itália: Gruppo Editoriale L'Espresso, 2010); A poesia é um estado de transe (poesia, São Paulo/SP: Portal Editora, 2010); La carne quando é sola (poesia, Firenze/Itália: SEF, 2011); Vida de boneca (infantojuvenil, São Paulo/SP: Edições SM, 2013); O músculo amargo do mundo (poesia, São Paulo/SP: Escrituras, 2014); Vou andando sem rumor (antologia poética, Coleção Sentimentos do Mundo, volume 4, Santa Cruz do Sul/RS: Gazeta Santa Cruz, 2015); Ditelo a mia madre (poesia, Rimini/Itália: Fara Editore, 2017); Minha língua roça o mundo (poesia, São Paulo/SP: Patuá, 2018); Ero in un caldo paese (poesia, Rimini/Itália: Fara Editore, 2019); Tempo suspenso (poesia, São Paulo/SP: Primata, 2021); Esses dias partidos (São Paulo/SP: Patuá, 2022); entre outros.

Participação em antologias e coletâneas: Antología de Poesía Brasileña (org. Floriano Martins e José Geraldo Neres, Valencia/España: Huerga & Fierro Editores, 2006); Incontri Con La Poesia Del Mondo/Encontros Com a Poesia do Mundo (antologia poética bilíngue Italiano-Português, org. Vera Lúcia de Oliveira e Paula de Paiva Limão, Perugia/Itália: Edizioni dell'Urogallo/CILBRA, 2016); Antologia de Poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: Costelas Felinas, 2017); I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz (org. Alexandra Magalhães Zeiner e Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR, 2018); Colectânea Mulherio das Letras Portugal Poesia (org. Adriana Mayrinck, Lisboa-PT: In-finita, 2020); Coletânea Enluaradas I - Se essa Lua fosse nossa (e-book, org. Patricia Cacau e Marta Cortezão, Alemanha: Ser MulherArte Selo Editorial, 2021); Coletânea A Obra de Maria Valéria Rezende - Resenhas e Variações (org. Adriana Mayrinck e Vanessa Ratton, Lisboa-PT: In-finita, Santos/SP: Amare Livros, 2021); Prêmio Off Flip 2021 - Conto (Selo Off Flip, 2021); Prêmio Off Flip 2021 - Poesia (Selo Off Flip, 2021); As mulheres poetas na literatura brasileira (org. Rubens Jardim, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2021); entre muitas outras.




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