A PALAVRA SURPREENDENTE - EM PROSA OU POESIA - DE NANETE NEVES | PROJETO 8M



fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão', 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Mergulhe na palavra sempre surpreendente de NANETE NEVES:


RETRATO FALADO

Os papéis amarelam-se, as lembranças ficam amassadas, puídas, pouco a pouco me apago nos retratos. Onde foi parar todo aquele sentimento? Para onde foi aquela garota risonha de olhos vivos e ingenuidade tão genuína quanto improvável? Inviável. Era jovem demais para ser julgada, crescida demais para ser perdoada. E a vida não nos protege dos deslizes nem releva as esperanças.

Nem sei bem quando aconteceu. Num passo em falso despenquei. Mais dolorida a queda dos confiantes. Não contei com a idade e a chegada dos medos, da falta de força e do começo das desistências. Primeiro desisti da liberdade, depois dos sonhos e, por fim, desisti de mim. Construí um personagem, esse sim plenamente aceito, conveniente e capaz de enfeitar qualquer ambiente, como um objeto de decoração, dentro do molde. Nem uma cor a mais, nem um som, um trejeito. Um ser que não destoa. No começo, ainda havia o sentimento do desconforto. Mas o tempo traz o hábito. Hoje, lá fora me sinto em perigo. Dentro, confortavelmente presa. Na gaiola, meu canto é um pranto afinado como água corrente.

(* conto extraído do blog naneteblog.wordpress.com, 19/06/2012)

imagem do Pinterest 
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EMOÇÕES PUÍDAS 

A vida corre lá fora, mas dentro daquele Homem-Saudade o tempo praticamente parou. A casa é um caos de embalagens de comida delivery abandonadas pelos cantos, pilha de louça na pia, roupas há muito aguardando serem lavadas, as paredes sujas e descascadas.

Poucos móveis restaram por ali, a maioria foi aos poucos sendo destruída pelos habitantes de quatro patas. A maior diversão de Groucho é roer pés de sofá e todas as madeiras à vista até que desapareçam totalmente. Já Blanca assumiu a velha poltrona como território seu depois de criar um ninho dentro da espuma com as unhas afiadas de felina. Scooby, o maior de todos sente-se o rei do pedaço, ameaça a todos com seu latido selvagem, e larga por todo lado pêlos que se misturam aos do Capitão, da Palito e do Bolão formando bolas enoveladas espalhadas pelo espaço que, um dia, foi confortável.

Ceder é o verbo preferido do Homem-Saudade. Foi assim quando Ninica resolveu que seu lugar era o velho monitor, e ele então teve que aprender a trabalhar com o “S” do rabo dela decorando a tela. Com o tempo, o velho monitor de tubo foi aposentado e empurrado para o fundo da mesa entulhada de coisas, sendo substituído por uma tela fina e fria. Desde então, a gata passa os dias na escrivaninha e, quando quer calor, ela se aninha no ombro miúdo do seu dono que, por conta disso, teve que aprender a digitar com uma mão só. A outra fica ocupada em ajudar a bichana nesse precário equilíbrio.

Luther é especialista em vinil, e desenvolveu sofisticada técnica de reduzir a cacos exemplares raros da antiga coleção do seu dono. Não todos, é claro, apenas aqueles que ele mais gostava de possuir. E de ouvir, quando ele ainda se permitia esse luxo. Faz tanto tempo que ele esqueceu-se de si, que já não liga mais para perdas. Deixou de sentir o nauseante cheiro de excremento animal que domina o seu lar, preferindo recordar-se do suave perfume do bebê que, anos antes, e por um tempo tão curto alegrou aquele espaço, até um dia dormir para nunca mais despertar.

Fora os bichos, o trabalho insano e solitário como tradutor naquelas teclas, uns poucos amigos que vê raramente, e o conhaque, companheiro habitual, a leitura é seu passatempo mais querido e constante. Por isso guarda os livros dentro do único armário que restou mais ou menos inteiro no imóvel.

É quando ele se aninha na cama com um volume na mão, cercado da dezena de animais, que ele pode escapar para outros mundos. Só assim ele consegue esquecer por instantes daquela que, para suportar a perda precoce daquele nenê tão esperado, começou a pegar animais abandonados pelas ruas acreditando que, assim, a sua dor ficaria mais leve. Não ficou. Um dia ela fez a mala para temporada de trabalho no exterior e nunca mais voltou, deixando com o marido os bichos que eram dela e a dor que era dos dois. Todo mês ela liga prometendo que, no semestre seguinte, volta de vez, mas sempre renova o contrato de trabalho. Voltar carece de coragem, coisa que ela não tem.

Nesse tempo de espera, o Homem-Saudade tomou uma única atitude no seu viver provisório: mandou castrar todos os gatos e os cachorros da casa. De uma forma ou de outra, o futuro será diferente e, quem sabe, mais leve.

(* conto extraído do blog naneteblog.wordpress.com, de 03/07/2012, e na Colectânea Corda Bamba, Pastelaria Studios Editora, Lisboa-PT, 2012)


imagem do Pinterest 
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A CHAMA EMPRESTADA

A vida é uma chama provisória. Uns simplesmente a deixam queimar tranquilamente até se extinguir: um viver sem ousadias ou grandes pulos, mas também sem sobressaltos. Outros têm tantos projetos e sonhos que a assopram buscando aumentar a energia de cada dia. Existem os que mantêm a chama encarnada, sempre cuidando de deixar uma reserva para o amanhã. E aqueles que consomem tudo sem se preocupar com o futuro. Mas não importa quando, nem como a deixamos entrar, a idade chega. Velhice é ir se despedindo das coisas, aos poucos. Porque não tem jeito, ser velho é todos os dias. Então, meu bem, melhor é se conformar que o tempo não corre a nosso favor. Parece sempre um rio voltado pro lado de lá. Mas sempre em movimento, é isso o que importa. Um dia de cada vez, aproveitando-se o máximo cada minuto emprestado do infinito.

(* crônica extraída do blog naneteblog.wordpress.com, 06/01/2013)

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ÁGUA

na manhã gelada
a corrente mansa
em seu murmúrio molhado
descia lambendo os seixos
língua doce, encantada
fazia uma trança
Beleza tão linda
juro, me tirou dos eixos

(* poema extraído do blog naneteblog.wordpress.com, 25/09/2013)

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CORPO

Tem dias que acordo
semente e esperança
em outros me sinto
um broto vencido
fazendo hora extra
estar por um fio
Chego até a me achar
mais pra lá do que pra cá
Então me ponho a pensar
quando minha hora chegar
e eu der o último suspiro
cova rasa? sete palmos?
não, melhor virar poeira.
Assim me aquieto
sem mais perguntar:
o que será de mim
no cruzar da beira?
Prefiro me imaginar
boiando no azul sem fim
dançando no tempo
da eternidade

(* poema extraído do blog naneteblog.wordpress.com, 23/10/2013)

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FUNILARIA DO TEMPO

A faca fina do tempo  
riscou minha face 
vincou vãos, fendas
A vã filosofia
pode chamar de velhice
já  eu desconfio
são faturas de tanto riso

E cada vez que me olho
no espelho mais
me reconheço
E compreendo que
o martelinho do
tempo é de ouro!

(* poema extraído do blog naneteblog.wordpress.com, 22/01/2014)

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SINGULAR

Não consigo
parar de fumar
atacar brigadeiro,
pavê, musse e
bolo quente

Não consigo
beber tanta água
dormir tantas horas
evitar a pimenta
me exercitar

Não consigo
falar quando acordo
fazer tudo certo
e ser pontual

Não consigo
esgotar a dor em palavras
mesmo varando noites
rasgando meu ventre
e tantos papeis.

Mas do meu modo imperfeito
Me dou o direito
De ser singular

(* poema extraído da TL do Facebook, 11/02/2017)


fotografia do arquivo pessoal da autora 
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POEMA CONCRETO

Vejo rostos nas nuvens
Ursinho na espuma do café
E monstros no quarto
nas noites insones.
Dizem que deliro.
Vejo amor em teus olhos
Duvido.
Mas o volume entre tuas pernas
É concreto!

(* poema extraído da TL do Facebook, 12/02/2019)

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HUMORES DO VENTO

O vento tem várias faces
pra se comunicar conosco. 
Ele vem em tufão  
quando quer alertar 
e gritar verdades
Se veste de vendaval 
varre tudo
traz medo
levanta até o mar
quieto em seu canto.  
O vento, quando quer só provocar,
bate portas, trava peitos, 
bate pestanas
Nas vezes em que sibila
causa tumulto
com seu grito agudo
invadindo janelas e vãos.
O vento canta quando
carrega mensagens amorosas, 
difíceis de decifrar.
O vento sussurra
quando o tempo é de paz.
E quando estamos de bem, 
ele suspira 
e assopra na minha orelha
alguns conselhos 
basta que eu esteja atenta...

(* poema extraído da TL do Facebook, 12/08/2021)

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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


NANETE NEVES é natural de São Paulo/SP, onde reside. É jornalista e escritora - contista, cronista, novelista,  nemorialista, poeta - com duas pós-graduações em escrita literária. Após longa carreira como jornalista, hoje vive de escrever e ministrar oficinas literárias online e ao vivo (LabPub: Ghostwriting & Biografias, e Oficina Criativa). Ministra o curso presencial “Ouvir, falar e convencer” (destinado ao mercado corporativo). Também é editora, leitora crítica, preparadora de originais e coach para autores. Participa de várias antologias de contos no Brasil e em Portugal. 

Livros publicados: Lavoura dourada (livro-reportagem, Editora Évora/2010); Batendo ponto: uma colherada de humor na hora do cafezinho (com Nelson de Oliveira e Marcelino Freire, Novo Século/2013); O Poeta e a foca (memórias-reportagem, Pasavento/2015, livro em que relata como foi a primeira jornalista a entrevistar Carlos Drummond de Andrade); De âmbar e trigo (novela, Alink Editora/2016); Transforme sua vida em livro (ebook paradidádico, Amazon Kindle/2020); Um mar de corações expostos (crônicas, com Eliana Harbeli, Elizabeth Lorenzotti e Teresa Ribeiro, Lavra Editora/2021); entre outros.







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