Minha Lavra do teu Livro 14 | "PARA DIMINUIR A FEBRE DE SENTIR", de DALVA MARIA SOARES, por Nic Cardeal

Minha Lavra do teu Livro 14
- resenhas afetivas -




"PARA DIMINUIR A 

FEBRE DE SENTIR":

ESCREVER PARA ALIVIAR 

AS DORES DO VIVER

"Todo símbolo tem uma carne,
todo sonho uma realidade."
(Oscar V. L. Milosz)


PARA DIMINUIR A FEBRE DE SENTIR, de DALVA MARIA SOARES (Belo Horizonte/MG: Venas Abiertas, 2020) é um livro de crônicas do cotidiano, mas também é poesia em prosa - afinal, teríamos como estancar o poético da vida? Não. Não me parece possível, mesmo que a realidade seja tão nua e crua quanto as lágrimas que jorram feito temporal barulhento num rosto cansado de mãe à procura do 'sempre' melhor para o filho. Ainda assim, ali mesmo - nas lágrimas - a poesia sangra, porque poesia também é ferida aberta e, a palavra, a agulha que a costura (*).

O título do livro é bem propício: nas mãos de Dalva todo o sentir parece febril - é preciso, então, reduzir a temperatura do corpo para tocar a caneta e mergulhar na palavra [que às vezes - ou quase sempre - queima até o toco da esperança, mas que também faz renascer o verbo das cinzas dos dias]. Porque viver tem disso tudo: dores de todos os tipos e tamanhos, cores, nuances e brilhos; alegrias passageiras, suaves como uma brisa, ou profundas como tantos mergulhos.

Através das crônicas de Dalva, fico com desejo, tal qual seus amigos, de conhecer a cidade mineira de Baldim, e de assistir a um 'cortejo de congado'. Tenho vontade de chorar, ao ver minha mãe em suas palavras: "(...) Mamãe era muito brava. Como a mãe do conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, era ela quem regia, e quem ralhava no diário com a gente. (...)" (p. 26). Nas páginas da sua 'febre' há algo de angustiante, de súbito pranto, também há daquelas alegrias repentinas que jorram ligeiro, procurando um leito recortado de rio para poderem navegar sem pressa, com desejo de durar até alcançar a 'eternidade' do mar sem fim. Há também muito (muito!) de sonhos improváveis, mas plenamente possíveis, nos recortes que a astuta percepção de Dalva faz do cotidiano, trazendo-nos a realidade sugada pelos olhos, pela alma. 

Enquanto Dalva vai conseguindo render a febre dos sentidos, permite-nos - a nós, leitores - que respiremos junto com ela, quase como se nos sentisse 'espectadores indissolúveis' de suas mãos a traçar as linhas fortes, firmes e rasgantes sobre o papel. Mesmo que se utilize de outros meios para os seus registros diários, além do lápis ou da caneta, dá-nos o tom de quem marca com a força inconfundível de mulher guerreira, cada palavra dita, sentida na pele, vivida no corpo, e também pelos avessos de si. Não a toa que escreve: "(...) Minha força vem dessas mulheres, simples e guerreiras, grandes matriarcas; minha descendência vem desse império. Cada dia eu me convenço mais de que sou é mulher do povo, mãe de filho. Quero ser carpideira, encomendadeira de almas, puxadeira de terço, dançadeira de São Gonçalo. É desse lugar que vim, foi nesse lugar que me criei e é nesse lugar que gosto de estar (...)" (p. 32).

Eu também quero minha mãe de volta - senti vontade de dizer a Dalva - pois seu desejo inundou meu peito. Chorei com a 'febre', olhando pela janela, procurando minha mãe no portão que sequer tenho em frente à casa. Fiquei animada para retornar minhas caminhadas tão insistentemente indicadas e necessárias, imaginando-me em Baldim, um lugar encantado "cheio de personagens que parecem saídos dos contos de Guimarães Rosa" (p. 61). E jurei qu'inda vou conhecer sua cidade. Curiosa, procurei a letra inteira da música do Criolo (quis ouvir com ela, enquanto a lia: "É, dizem que não é pra você, esta história de vencer, de sonhar e conquistar. É, mas eu digo que é pra você, essa história de vencer, de sonhar e conquistar", p. 67). 

É um pequeno livro tão gigante que, se não diminui o calor da 'febre' que me chegou tão intensa, a faz suportável, porque Dalva tem um jeito minucioso de dizer sobre a importância das partilhas: a gente aprende a dividir e, quando encontra com quem repartir, todos os pesos se tornam mais leves - mesmo que seja liberando as palavras, prestes à explosão na 'panela de pressão' dos pensamentos. Porque dividindo, compartilhando, até a dor pode logo ir... porque a 'febre' de Dalva tem 'uma carne', e o seu sonho 'uma realidade'. Sim, Dalva, você está certa: "É trabalho árduo, mas não há outra saída: ou conseguimos nos expressar ou é a loucura" (p. 58)!

Bem verdade: eu pude sentir - todas as mulheres cabem em Dalva. Em nós. Não temos como apagar (nem devemos) as que nos fizeram, as que nos moveram, as que nos libertaram. E todas as outras que se seguirão a partir do nosso porvir. 

Obrigada, Dalva. Muito obrigada por me ajudar a melhor compreender esse 'sentir'! E ver, enfim, todas as mulheres também em mim.

(*) ideia do poema de "Ferida Aberta", Nic Cardeal, in: "Sede de céu", Penalux/2019, p. 155.

(Nic Cardeal)


capa do livro Para diminuir a febre de sentir 


Uma crônica extraída de Para diminuir a febre de sentir:


"A JANTA TÁ PRONTA?

Cinco e quinze da manhã. O som das patas do Scooby na porta me desperta do sono. Venço a vozinha que, todos os dias, na hora da caminhada, sussurra para eu não ir, e vou.

As luzes da cidade ainda estão acesas. Coloco os fones de ouvido e saio, embalada pela voz de Nina Simone: "Ain't got no home, ain't got no shoes, ain't got no money".

No céu, a lua está inteira. Do outro lado, o tom vermelho-alaranjado atrás da serra informa que o sol surgirá em breve. Os cachorros ainda dormem enrodilhados no meio da rua. 

Seis horas em ponto. O carro da secretaria passa com a equipe da saúde da família a caminho da zona rural. A lua sumiu, o sol já vai alto. Dou meia volta no trevo e retorno. Vejo criança penteada e com o uniforme da escola. Apresso o passo para ter certeza que o menino acordou com o despertador.

Sete horas. Despachar o menino pra escola, cozinhar feijão, comprar carne, frutas, leite... São os lembretes do dia pregados na porta da geladeira. Menino despachado, surge a pergunta: e a escrita? Lembro-me de Virginia: "Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses".

Oito e meia. O supermercado já abriu. É melhor me apressar para as compras se quero uma manhã produtiva. Prendo os cachorros no quintal para não irem atrás de mim. Desço a praça pela calçada da esquerda. Pouquíssimas pessoas na rua. Ainda bem: assim não me atraso. Sempre tem alguém a fim de uma prosa.

Compro rapidamente os itens da lista. Saio apressada do supermercado e, ao virar a esquina, encontro com Dona Celsa, que me abraça. A conversa se prolonga mais do que o planejado. 

- A prosa tá boa, mas preciso ir. Daqui a pouco o menino chega com fome da escola.

- Eu também. O Domingos ficou no bar. Não gosto de deixar ele sozinho, não. 

Nos despedimos.

Nove e trinta. Chego em casa e sou recebida pelos cachorros. Os danadinhos conseguiram se soltar. Os dois vêm pra cozinha e se acomodam embaixo da mesa. Eu, que nem gostava de bicho em casa, me entrego a este afeto que até pouco tempo desconhecia: me converti aos cães. 

Computador em cima da mesa da cozinha, dou uma olhada no texto que ficou aberto. "Quem nos deu permissão para escrever?", pergunta Gloria Anzaldúa. "Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever?"

O apito da panela de pressão me traz de volta. Preciso começar o almoço, mas, antes, uma passadinha de olhos naquela que me inspira: "Deixei o leito às 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar, eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. [...] Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever".

Suas palavras ecoam: "todos os dias escrevo. Sento no quintal e escrevo". Valei-me, Carolina!, rezo em voz alta.

Dez horas. A manhã voa. Tiro a panela do armário e começo a preparar o arroz. Fico pensando no texto de Anzaldúa quando ela diz que a mulher que escreve tem mais poder, e que é preciso colocar as tripas no papel. Pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima: que aprendi com Adélia. 

Com Carolina, aprendi que é possível escrever sentada no quintal, com papel de pão e um pedaço de carvão. Clarice escrevia com um filho em uma perna e a máquina em outra.

Dez e quinze. Coloco a água no arroz. Dou uma pausa e leio um texto. Ele fala sobre grandes livros e filmes: "os personagens amam ferozmente, correm, cavalgam, inventam mentiras, planos, raciocinam e matam, que seja. Nunca, porém, eles interrompem suas grandes sagas para comer ou lavar a louça. É como se não fosse preciso. Como se essas funções vitais da humanidade não coubessem a eles, mas sim a outras pessoas, aquelas devidamente escanteadas, humanas demais no sentido prático e, portanto  - por que não dar nomes aos bois? -, exploradas. As vidas invisíveis existem nas narrativas da ficção e do mundo real. Muitas vezes, inclusive, se interseccionam. Quem é capaz de imaginar William Faulkner cozinhando seu próprio arroz? Pouco provável". Danadinha essa Helena Zelic! Uma menina, ainda.

Onze em ponto.Tempero o feijão. Como Helena, também me entedio com uma literatura de grandes feitos, de grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escrita com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária e de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos para a escola.

É daqui, da mesa da cozinha, que vou juntando os ingredientes da minha escrita. É nesse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. Computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. É mexendo uma panela e outra que vou dando sentido ao vivido e experimentado. As anotações e os rascunhos estão todos marcados: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que, de tanto esperar, já ficou entediado; pingos do café entornado que apagaram o escrito; pingos da sopa que coloriram de urucum, justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo. É daqui, no espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado dessa escrita fique gostoso.

Onze e meia. O menino chega da escola. Almoçamos. Ele lava o prato. Terminada a arrumação da cozinha, vou para o tanque enfrentar a roupa suja, a vida sem amaciante. Depois da roupa estendida no varal, uma ajeitadinha na casa e volto para a cozinha. Sento em frente ao computador. 

São três da tarde. Ainda tenho um tempinho de produção até a hora do jantar. 

Lembro de Ana Carolina, a cineasta, não a cantora, se referindo ao seu belíssimo filme: "Amélia": às vezes, demoramos uma vida inteira pra aprender a falar a nossa própria língua, nos fazermos entender. É trabalho árduo, mas não há outra saída: ou conseguimos nos expressar ou é a loucura! Felizes aqueles que conseguem construir seu próprio dialeto.

Dezessete horas. Consegui escrever um pouco. Lembro de Emily Dickinson:

Uma palavra morre
Quando falada
Alguém dizia
Eu digo que ela nasce
Exatamente 
Nesse dia

"Mãe, a janta tá pronta?"

São dezenove horas."

[pp. 50-59]

-*-


fotografia do arquivo pessoal da autora 


DALVA MARIA SOARES é natural de Baldim/MG. Graduada em Ciências Sociais (UFMG, 1995) e doutora em Antropologia Social (UFSC, 2016). Mãe do João Pedro, professora e escritora.

Participação em coletânas/antologias: Raízes - escritoras negras: resistência histórica (Venas Abiertas, 2018); Raízes - escritoras negras: resgate ancestral (Venas Abiertas, 2019); Ócios no Ofício: antologia poética (Venas Abiertas, 2020); e Carolinas: a nova geração de escritoras negras (Bazar do Tempo/Flup, 2021). 

Livros publicados: Para diminuir a febre de sentir (Venas Abiertas, 2020); Do Menino (Venas Abiertas, 2021); e Me ajuda a olhar (Venas Abiertas, 2023).










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