Resenha 'afetiva' do livro SOBRE AQUILO QUE NÃO CESSA, de SOLANGE PADILHA

 

(capa do livro 'Sobre aquilo que não cessa')

A POESIA QUE NÃO CESSARÁ

(por Nic Cardeal) 

Em SOBRE AQUILO QUE NÃO CESSA, livro publicado pela Editora Patuá (São Paulo, 2020), SOLANGE PADILHA esmiúça o verbo poético como quem conhece além do fundo a existência humana e seus meandros emocionais e sentimentais, diante da realidade social e política - ainda que nua e crua -, da história, da cultura e da arte. Não a toa que na orelha o 'brinco' é de Maria Valéria Rezende, que assim a apresenta:

"Este não é um livro a ser folheado e lido ao acaso, um poema aqui, outro ali. É uma viagem sem volta, creio, para a qual é preciso encher-se de ousadia, como a poeta que os escreveu. Há que se deixar envolver desde a primeira página no redemunho, redemoinho, remoinho, tornado, ciclone em que não se pode mais desenlear palavras, nem eu, nem tu, os outros, animal-vegetal-mineral, o mundo aqui e além, até o alto de onde, então, pode-se ver com nitidez o que se estende neste nosso chão, hoje mais perigoso que qualquer furacão(...)"!

O livro é dividido em 6 partes, num processo (quiçá) de extensão dos 'variados universos' que a (nos) habitam, em que a autora parte do corpo, segue pelas territorialidades por fora do corpo, vislumbra os amares, as partículas, depois retorna ao corpo para dizer que é ele quem escreve, até estar finalmente pronto(a) - ele, o corpo, ela, a poeta - para ir à rua (ao mundo), sem se obrigar, no entanto, a levar flores [em um sentido metafórico espetacular].

Em Corpo flutuante (1), os poemas são feitos da densidade das estruturas (ou de suas partes) que permeiam os corpos no plano físico da matéria visível [sim, porque há matéria extrafísica, aérea, flutuante!], ao alcance do tato, como se fosse preciso, sim, confirmar a existência concreta para 'habilitar' todas as formas de vida. E isso já é da mais pura ousadia. Aqui se estabelecem todos os mundos possíveis na órbita da existência: desde o corpo da Terra, que viaja incessantemente na elíptica; os nossos próprios corpos (de desejos, de sonhos, de suores e lágrimas); o corpo do verbo a desfolhar a palavra; as estações do ano a marcar as inconstâncias do tempo (e suas tantas faces no corpo lunar); até as sensações internas (do corpo), ainda que transformado em casa, telhado, portas e janelas, guardando (nem sempre incólume) a alma. Para os devaneios da palavra de Solange, todos os corpos são 'instrumentos incessantes' para o verbo: o corpo que nada; a Lua que se move em faces (e fases) sempre de um só lado para nós [como se quisesse esconder-nos algo]; os buritis plantados; a areia da praia sonhando a onda; a chuva das nuvens ao solo, no alimento das criaturas. Até que haja a mistura, fecunda mistura de 'gente-árvore', para enfim compreender a raiz (pág. 33):

"Com os quatro braços cortados

pela metade

ainda acordo

árvore 

não uma mesa

Árvore 

danço com montanhas

e mesmo

sem respirador 

minhas raízes entranham

o chão 

Navego

o aquífero

do

devir"

Em Territorialidades (2), Solange estica a poesia sobre os espaços, "entre o Tigre e o Eufrates" (pág. 36), abre a língua (linguagens) para além do céu da boca, faz poesia voante, alada, sobrevoando acima, sobre tudo - sobretudo como se fôra a palavra um 'drone' profético de alcançar todas as (quase) impossibilidades do reino - e, em sobressaltos, capta o que (aparentemente) parece intangível a olhos vistos. As territorialidades da palavra são extensas, soam ecos, percorrem abrigos, cavernas, mundos, ou mesmo um verbo arrebatado, solto no ar. As cidades demarcadas por tijolos, uma igrejinha, o bar da esquina, a estrada cimentada levando a vida em velocidade máxima - a paisagem das misérias sem solução. Tudo é possível naturalizar-se poético na costura linguística da autora, inclusive um corpo no lugar, um sentido do lugar, um sentimento de ausência de lugar (pág. 42):

"faltavam as curvas sobre a calçada 

a ponte ao outro lado da baia

a nave de Niemeyer

o passeio por um bairro de Caracas.

Faltava o majestoso vale

e a rua a (se) perder (d)a página

E parecia indecente o quanto tudo falta,

ao corpo solta

vertigem

deslizando

sua falta

a retornar 

lugar a lugar

pulsando

sob o lacre

teu nome"

E a palavra segue, feito larva, lavrando o chão, alargando-se máxima em poesia mínima, fina, tênue como seda, "asa aberta", território livre, sem fronteiras (pág. 49):

     "Larva


      Lavra


  palavra larga


       lagarta


          seda


           asa


       abertA


        casa


          pá


la                   vr

           

            A"

Em Amares (3), o amor é o sentimento que não cessa. Desde a infância, a mãe -  "(...) explosões de estrelas/a eletrizar o peito/partículas/em busca/do amar infinito" (pág. 52) - ; a pessoas marcantes, marcadas - "(...) Muitas histórias/plantadas/nos cabelos cor de prata/Ela amava a Revolução/aventuras clandestinas/(urdidas na guerrilha/guardadas em outras arcas) (...)" (pág. 56) -; ou o recado dado (ou recebido?) (pág. 59):

"Meu caro, o real não cede ao coração 

Ele tem nas mãos as linhas que embaralham 

arquiteta fios

mas

não salva:

nem das trincheiras do amor 

nem do solilóquio"

Sim, não há que se findar o verbo quando também é de 'amares' que trata a poesia de Solange. Ela - a poesia - conjuga o amor em "políticas do desejo" (pág. 60), no prazer desregrado, na "receita de um romance" seguida à risca (pág. 61), pois é preciso ir, até encontrar, cara a cara, o desejo do corpo, da boca, da palavra dita, até o último capítulo, em todos os âmbitos dos sentidos, pois "(...) é muito perigoso olhar pra cima/sem ver o caco de vidro (...)" (pág. 74), que também pode cortar [e ferir] a pele da alma, quando não se pode aprisionar os sonhos dos sentidos em cadeados sem chaves. 

Em Partículas (4), Solange viaja na impermanência. Tudo é tênue como um segundo, volátil como um respiro, escorregadio como um sussurro ao pé do ouvido. É a mortalidade dando contornos à vida, o efêmero desenhando os caminhos, a memória resgatando quimeras, ainda que em insignificantes partículas de estranhamento de mundos. Mas é preciso ser memória, é preciso oxigênio (sempre), é preciso o sopro, o susto, o assombro do momento contido no 'espaço-tempo', pois não há tempo, porque "(...) O imponderável finito improvisa o nada que/responde a nada/(...) O fechamento do curto fio. humanidade. /Como são os seres felizes?/Apagar o desejo de ser deus. /Diante adiante./ A morte necessária. /O osso./O cálculo estelar./Poeira." (págs. 82/83). É preciso terminar de listar os objetivos, pois são daqueles que 'não cessam' - então há que fazer escolhas, vender, doar, cortar, deixar, recolher. Também esquecer. E lembrar que o Universo não caberá em um pen drive (pág. 88)... ou todas as partículas da existência em uma poesia infinita (pág. 90):

"O Paraíso é uma miragem

De braços abertos 

se move

No mergulho 

escorrega

Fechando os braços 

sumiu

No horizonte 

o planeta Terra"

Em Meu corpo escreve cruzando fagulhas (5), a poeta faz o caminho de volta, retornando ao corpo, casa de sua alma, para dizer que é ele (ela) quem escreve. Há aí a redescoberta do sentido profundo da palavra, entre bela e fera, terra e água, nas esferas complementares do zodíaco, o corpo funde-se à janela (como se vislumbrasse, enfim, a alma), procurando o outro (corpo), a outra (alma), no melhor objetivo da existência. E as fagulhas borbulham, acesas (ou distraídas), ao cruzar do corpo sobre as palavras (pág. 96):

"Escrita para dizer escrevo

Escrita para escrever existe.

Letra

quizomba de dentro

excremento de fora

desenho tatu bola

bode preto.

Body Escrita Música.

Sobre o corpo e emendas 

sobre os braços 

voz ativa

espelho e

face oculta

acesa ou

                                                  distraída"


Na costela (imagino que não a de Adão, mas, sim, autêntica - e única - a de Eva!), a poeta sente (e sabe) o silvo, a voz, a letra (feita de sol - luz própria de cada mulher), para Ser fora do quadro, da forma, da estrutura, na liberdade de permanecer, ou virar a página. Não há dúvida de que, ainda que "em carne viva" (pág. 98), resistirá - resistiremos - além da fábula, feminista(s)! 

E o corpo fala, e o corpo grita, e o tempo escreve no corpo 'a ressaca da vida', porque envelhecer é verbo absoluto na relatividade do mundo (pág. 102):

"A foto é antiga.

Sou eu

tentativa de encontrar pedras fósseis

O âmbar que atrai

eletricidade alquimista

e velha bruxa

a voar na velocidade

da luz"

Sim. Não cessa o tempo. Nem a palavra - que precisa ser dita, ainda que, "para esquecer contratempos" seja necessário embrulhar-se "em papel laminado", para saborear "o calor da fogueira" - o corpo, "como superfície lunar/num quase eclipse" (pág. 103). Não.  Jamais cessará o tempo "na linguagem alquímica" (pág. 106) que faz do corpo a flecha certeira no alvo da alma!

Em Pronta pra rua, não levo flores (6), a autora vai ao mundo feita de corpo sólido [e também flutuante], edificada nos amores [e amares] da alma, construída em partículas de terra, vento, poeira, sopro cósmico das esferas, para ocupar as territorialidades do mundo, e confirmar - a si e ao mundo - que é o corpo [com alma!] quem escreve, e é ele (ela) quem vai à rua para declarar, com ousadia, na realidade (tão nua e crua), que a poesia é resistente, ímpeto perene e persistente, sobrevivente incansável na esperança da semente. Mesmo que não leve flores, leva consigo a ferramenta mais útil - na percepção [íntima] do mundo, na tradução [relativa] do mundo, na compreensão [única] do mundo - a palavra! E, com ela, diz ao mundo sobre o mundo, "dos heróis e de escribas" (pág. 108), do "dia farto de barulho" (pág. 109), das

"(...)

barragens

barrobarrobarro

gente gente gente

rio,

casas

gentes

o rio,

desaparecidos

Arquivo: Povo Brasileiro, Brumadinho, janeiro, 2019."

(pág. 111)

Não. Não há como levar flores, se uma mulher ainda é alvo; se a bala (não perdida) acerta o (negro) alvo; se não se encontram os assassinos - e (ainda) é preciso nunca esquecer do (premeditado) alvo: "Marielle Presente" (pág. 114); se do filho "jaz na rua, no local, no cimento, /sem música nem flores ou enterro/jaz o pedaço/de seu/Na sua pele/o fluir/aceso do silêncio/pulsa/o coração/em seu rosto" (pág.  115). Tudo o que não cessa, nem cessará: as perguntas sem respostas, as pedras (imensas) do caminho (e calçadas), as mães de maio (e de janeiro a dezembro),  "a cor que não importa" (pág.  119), a escrita que importa, sim, importa!, o poema que comporta (págs. 124-127):

"(...)

Ontem como hoje

fazer do poema o aeroplano

voo acima do vazio

transbordantes fronteiras 

invento de línguas 

impregnando

(...)

Ontem como hoje

No século que estamos vivendo 

A conexão do poema levante

recomeça em encaixes

de vozes e escritas

no grande quebra-cabeças 

que

quem sabe leve a contra marcha

desta insensata linha evolutiva."

As flores que não foram à rua ainda estão vivas. Porque não cessa a poesia. Ela se chama Carolina (pág. 128). E Rosa, Olga, Angel, Hilda. Também Maiakovski, Victor, Solange, "e todo o povo da favela" (págs. 122 e 123). "Sobre aquilo que não cessa" floresce a poesia de Solange - e, em rosa, a lua (pág. 142):

"Olho a lua

Ser rosa

E rosa

entre nuvens

passar

luz refletida

insone

Lunar"

Tudo o que não haverá de cessar [jamais] - no que tange ao Sol (à Sol!), o olhar atento e ousado da poeta, fazendo do chão (mundo cão?) e, principalmente do coração, o melhor lugar para a gestação da palavra!

(fotografia do arquivo pessoal da autora)

SOLANGE PADILHA, paraense de Belém, vive no Rio de Janeiro. Morou em Paris durante a ditadura militar, formando-se em Ciências Sociais pela Sorbonne. Fez mestrado em Ciências Sociais pela  PUC/SP. É doutora em Antropologia da Arte pela PUC/SP. Fez pesquisas de pós-doutorado  pelo CNPq no acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Editou o primeiro jornal feminista brasileiro 'Nós, Mulheres' (1976/1979, SP). Poeta, poeta visual, atriz, pesquisadora, e fotógrafa amadora. Seus poemas foram publicados em várias antologias e blogs, entre eles, 'Nova poesia brasileira' (Hipocampo/1992); 'Poesia Grão-Pará' (Graphia/2001); 'Poemas cariocas' (Ibis Libris/2012); e 'Antologia de Poesias Mulherio das Letras' (Costelas Felinas/2017).

Livros publicados: 'Safographia' (poesia, Ed. Casa 6/1986); 'Dadá ainda anda' (poesia, ed. do autor/1992); 'Escrita labial' (poesia, Ibis Libris/2014); e 'Sobre aquilo que não cessa' (poesia, Patuá/2020).



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