Uma crônica de Dalva Maria Soares | "A janta tá pronta?"

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Uma crônica de Dalva Maria Soares

"A janta tá pronta"?


Cinco e quinze da manhã. O som das patas do Scooby na porta me desperta do sono. Venço a vozinha que, sussurra todos os dias, na hora da caminhada para eu não ir, e vou.

As luzes da cidade ainda estão acesas. Coloco os fones de ouvido e saio, embalada pela voz de Nina Simone: “Ain't got no home, ain't got no shoes, ain't got no money”... No céu, a lua está inteira. Do outro lado, o tom vermelho-alaranjado atrás da serra informa que o sol surgirá em breve. Os cachorros ainda dormem enrodilhados no meio da rua.

Seis horas em ponto. O carro da secretaria passa com a equipe da saúde da família a caminho da zona rural. A lua sumiu, o sol já vai alto. Dou meia volta no trevo e retorno. Vejo criança penteada e com o uniforme da escola. Apresso o passo para ter certeza que o menino acordou com o despertador.

Sete horas. Despachar o menino pra escola, cozinhar feijão, comprar carne, frutas, leite... São os lembretes do dia pregados na porta da geladeira. Menino despachado, surge a pergunta: e a escrita? Lembro-me de Virginia: “Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses”.

Oito e meia. O supermercado já abriu. É melhor me apressar para as compras se quero uma manhã produtiva. Prendo os cachorros no quintal para não irem atrás de mim. Desço a praça pela calçada da esquerda. Pouquíssimas pessoas na rua. Ainda bem: assim não me atraso. Sempre tem alguém a fim de uma prosa.

Compro rapidamente os itens da lista. Saio apressada do supermercado e ao virar a esquina encontro com Dona Celsa, que me abraça. A conversa se prolonga mais do que o planejado.

“A prosa tá boa, mas preciso ir. Daqui a pouco o menino chega com fome da escola”.

“Eu também. O Domingos ficou  no bar. Não gosto de deixar ele sozinho, não”.

Nos despedimos.

Nove e trinta. Chego em casa e sou recebida pelos cachorros. Os danadinhos conseguiram se soltar. Os dois vêm pra cozinha e se acomodam embaixo da mesa. Eu, que nem gostava de bicho em casa, me entrego a este afeto que até pouco tempo desconhecia: me converti aos cães.

Computador em cima da mesa da cozinha, dou uma olhada no texto que ficou aberto. “Quem nos deu permissão para escrever?” pergunta Gloria Anzaldúa. “Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever?”

O apito da panela de pressão me traz de volta. Preciso começar o almoço, mas antes uma passadinha de olhos naquela que me inspira: “Deixei o leito às 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. [...] Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. ”

Suas palavras ecoam: “todos os dias escrevo. Sento no quintal e escrevo”... Valei-me, Carolina!, rezo em voz alta.

Dez horas. A manhã voa. Tiro a panela do armário e começo a preparar o arroz. Fico pensando no texto de Anzaldúa quando ela diz que a mulher que escreve tem mais poder, e que é preciso colocar as tripas no papel. Pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima, aprendi com Adélia. Com Carolina, aprendi que é possível escrever sentada no quintal, com um pedaço de carvão e papel de pão. Clarice escrevia com um filho em uma perna e a máquina em outra.

Dez e quinze. Coloco a água no arroz. Dou uma pausa e leio um texto. Ele fala sobre grandes livros e filmes: “os personagens amam ferozmente, correm, cavalgam, inventam mentiras, planos, raciocinam e matam, que seja. Nunca, porém, eles interrompem suas grandes sagas para comer ou lavar a louça. É como se não fosse preciso. Como se essas funções vitais da humanidade não coubessem a eles, mas sim a outras pessoas, aquelas devidamente escanteadas, humanas demais no sentido prático e, portanto, – por que não dar nome aos bois? – exploradas. As vidas invisíveis existem nas narrativas da ficção e do mundo real. Muitas vezes, inclusive, se interseccionam. Quem é capaz de imaginar William Faulkner cozinhando seu próprio arroz? Pouco provável.” Danadinha essa Helena Zelic! Uma menina, ainda.

Onze em ponto. Tempero o feijão. Como Helena também me entedio com uma literatura de grandes feitos, de grandes personagens salvando o mundo. Sinto falta de uma escrita com cheiro de alho, de sabão em pó, de água sanitária e de amaciante. A caneta com cheiro de cebola, porque a ideia surgiu enquanto se preparava o almoço. O caderno sujo de óleo, porque passa os dias na mesa da cozinha. Sinto falta de personagens que lavam sua roupa, que cozinham sua comida, que levam os filhos para a escola.

É aqui, na mesa da cozinha, que vou juntando os ingredientes da minha escrita. É nesse lugar que, devagarinho, as letras vão se formando sobre o teclado e vão marcando, pouco a pouco, as páginas em branco. Computador, livros e cadernos dividem o espaço com o pote de pimenta, a lata de pão, o vidro de azeite. É mexendo uma panela e outra, que vou dando sentido ao vivido e experimentado. As anotações e os rascunhos estão todos marcadas: uma gota de gordura que caiu do prato, a marca da pata do cachorro, que de tanto esperar já ficou entediado; pingos do café entornado que apagaram o escrito; pingos da sopa que coloriu de urucum justamente a passagem onde escrevi sobre o caboclo. É aqui, no espaço da cozinha, que vou colocando os temperos e arrumando lentamente as ideias na cabeça, na expectativa que o resultado dessa escrita fique gostoso.

Onze e meia. O menino chega da escola. Almoçamos. Ele lava o prato. Terminada a arrumação da cozinha, vou para o tanque enfrentar a roupa suja, a vida sem amaciante. Depois da roupa estendida no varal, uma ajeitadinha na casa e volto para a cozinha. Sento em frente ao computador.

São três da tarde. Ainda tenho um tempinho de produção até a hora do jantar.

Lembro de Ana Carolina, a cineasta, não a cantora, se referindo ao belíssimo filme “Amélia”: às vezes, demoramos uma vida inteira pra aprender a falar a nossa própria língua, nos fazer entender. É trabalho árduo, mas não há outra saída: ou conseguimos nos expressar ou é a loucura! Felizes aqueles que conseguem construir seu próprio dialeto.

Dezessete horas. Consegui escrever um pouco. Lembro de Emily Dickinson:

 

          Uma palavra morre

Quando falada

Alguém dizia

Eu digo que ela nasce

Exatamente

Nesse dia

 

“Mãe, a janta tá pronta?” 

São dezenove horas.


Imagem de Meineresterampe por Pixabay. 



Dalva Maria Soares nasceu em Baldim, Minas Gerais, em 1966.  É doutora em antropologia social e professora. Participa das coletânas Raízes - escritoras negras: resistência histórica (Venas Abiertas, 2018), Raízes - escritoras negras: resgate ancestral (Venas Abiertas, 2019) e Ócios no ofício: antologia poética (Venas Abiertas, 2020). É autora de Para diminuir a febre de sentir (Venas Abiertas, 2020). É também mãe do João Pedro e escreve para respirar melhor.


Comentários

  1. Muito bom. Parabéns! Me identifiquei, porque também escrevo... E porque parece que o mundo conspira para que a gente não escreva, nem leia. 😉 Sigamos, resistentes!

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