De Prosa & Arte | Conto - Crônica de Intenção


Coluna 26


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 Conto - Crônica de Intenção

Vez ou outra, me ocorrem sopros de letrinhas travessas, reinventando intenções nos meus escritos. Temo que esteja me tornando violentamente e/ou assustadoramente escritora. Longe de querer receber esse título de outrem, eu mesma vou me dando o direito de assumí-lo. 

Um dia depois de um vendaval de letras me tornei poeta, e porque não poetisa?

Penso que até a Língua Portuguesa traidora, estimulada por alguns linguistas mais antigos ou tradicionais, tratou de estabelecer um substantivo feminino um tanto mais delicado. Talvez acreditando que o peso de ser POETA, só podia vestir calças e suspensórios. E até nisso, muita coisa mudou. Me afirmo poeta, com o valor e peso que a palavra tem. Mas não estou aqui pra discorrer sobre encrencas linguísticas. Não hoje.

Queria lhes contar que dias depois dos vendavais de poesia, sofri de uma tempestade de ideias e reflexões. Então, me peguei organizando a sopa de letrinhas das minhas imaginárias gavetas mentais em crônicas.

Dia desses, um tornado bagunçou todas as pequenas gavetas e me soprou um conto, depois de minha memória afetiva cantarolar uma canção e quase que automaticamente refletir sobre ela, segue: 

"Marina morena, Marina / Você se pintou / Marina, você faça tudo / Mas faça um favor / Não pinte esse rosto que eu gosto / Que eu gosto e que é só meu / Marina, você já é bonita / Com o que Deus lhe deu / Me aborreci, me zanguei / Já não posso falar / E quando eu me zango/ Marina, não sei perdoar.(¹)"

Vou pedir-lhes licença para dividi-lo.

Era uma vez... não, ops!
Não foi assim tão clichê... Vamos lá:

"Marina abriu o pórtico e as janelas para que o Templo recebesse a luz do fim de tarde. Lavou o chão e aspergiu águas de cheiro no ar: Gerânio e Lavanda. Limpou o salão contíguo, separou vinho e frutas, acendeu velas e incensos. Banhou-se de ervas e pintou-se de bronze, pois não tinha sonhos de Midas. Vestiu a túnica branca de barrado rosè, prendeu na lapela o broche com filigrana de seu Clã, logo chegaria o visitante, tudo precisava estar adequado ao galanteio.


Marina ouviu o som do sino dos ventos que sempre tilintava canções anunciando os convidados. Ele era uma figura reluzente, trazia uma harpa e trajava uma túnica bege com barrado bordado de linhas douradas, na lapela também um distinto broche brilhante.


Cumprimentaram-se e serviram-se de vinho e frutas. Marina pediu que ele tocasse uma canção, o visitante tomou a harpa, iniciou a apresentação enchendo o espaço com aquele som. Marina se agradava do som e do seu toque dedilhado, cada nota percutia em Marina produzindo arrepios e suspiros. Ela estava absorta com aquela sessão de música e vinho, aproximou-se e tocou seu rosto que era tão bem marcado e desenhado por uma barba suave, ela sorriu. 


Ele apartou-se da Harpa e tomou-a nos braços. O sol de fim de tarde jazia no salão e somente restavam as sombras dos corpos, produzidas pelo lumiar das velas. Lábios, mãos, o deslizar dos tecidos na pele. Ele sorveu do cheiro de alfazema de Marina e untou-se do bronze de sua pintura. Pernas braços, laços, se faziam. Era como planar, Marina experimentava e despertava no próprio corpo sensações nunca antes vivenciadas.


Ele era habilidoso, delicado, dedilhava sua pele com a mesma precisão que dedicava a sua harpa. O salão encheu-se de aromas frutados e florais que exalavam dos dois corpos.

Marina tinha ondas elétricas percorrendo todo o corpo, sentia-se desdobrar no prazer que entregava e que recebia. Distraídos, foram retirados do estado de torpor por uma súbita e austera batida no pórtico. Marina se desesperou, foi lançada para longe das sensações prazenteiras de antes e o medo habitual lhe tomou como sombra.


Entregou a túnica a Harpa ao convidado e pediu que se adiantasse pela porta dos fundos. Outra batida na porta. Marina se recompôs o mais rápido que pôde e atendeu o pórtico do salão a fim de desvendar quem lhe batia. 


Assim que destravou o trinco a porta se abriu violentamente e o sino dos ventos foi arrancado e arremessado a distância por aquela figura gélida que entrou perscrutando o ambiente. O homem em desequilíbrio, gritava:

 _ Quem é ele? Quem é ele?


Marina paralisada, tentou deter aquela lágrima grossa que ameaçava deslizar sua face. Disfarçando a sua surpresa perguntou:

_ Porque voltasse tão cedo da viagem à cidade? Esquecestes algo de importância?


O sujeito percebeu a porta do fundo fechar, não teve dúvida, tirou da cintura o couro afivelado e desferiu sem piedade golpes que zuniam ao girar no ar. Um desses golpes acertou o rosto de Marina. Uma dor lancinante e um jato de sangue escorria quente pelo seu rosto, manchando a túnica Branca.


Marina ainda ouvia a fivela zunindo no ar e atingindo sua pele pintada de bronze, tonteava e era possível ouvir o som rouco da voz do sujeito dizendo: 

_ Responda, Marina… responda, porque você se pintou?

Marina já não podia ouvir ou falar, desmaiou." (continua…)


E foi assim, fui chacoalhada pela ventania de letras miúdas que me sopraram parte de um conto. Como lhes disse, é algo assustador, eu que me despertei poeta, ando me arriscando nas crônicas, agora crio intenções de contista.

Minhas pequenas e imaginárias gavetas mentais que tratem de abrir espaço para as muitas facetas de mim que venho ensaiando.


A alquimia de palavras que comecei a tirar dos guardados sempre encontra um jeito de me surpreender. Espero que também possa me capacitar em mais um gênero literário. Se a literatura é o despertar senhoras e senhores... sim, estarei alerta!



(¹) Trecho de Marina - Composição de Dorival Caymmi














 

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