De Prosa & Arte | Sobre Pajelança e Griotagem



Coluna 5

Sobre Pajelança e Griotagem


No mês de novembro é muito comum lembrarmos Solanos, Gamas, Carolinas e mencionarmos Benguelas, Dandaras. Exaltarmos Zumbis e botarmos todos os pretos nas rodas de conversas e nas redes sociais. Como se esse diálogo não pudesse permear histórias e vivências de Janeiro a Janeiro. 

Mas no meu NOVEMBRO NEGRO gostaria de destacar alguém de muita relevância para a minha história que acontece no aqui e agora. As pretas Comuns… a Nyra do Carmo, negra índia, 92 anos, vulgo minha avó. Sim, peço licença para lembrar que algum tempo atribuí e dei créditos a minha fixação por versos, músicas e palavras ao meu pai que é sim um grande leitor, mas não posso deixar de dizer que essa coisa toda com verso e prosa, a paixão e encantamento nas linhas e escritos surge ali na pajelança da minha avó. Ao preparar unguentos, garrafadas para curar os nossos machucados, sarar os vermes e abrir nosso apetite. 

 

Essa loucura de botar poemas sem cessar vem também da sua energia de Griô, contadora de causo e história. Quanta saudade de suas histórias.

Ainda me lembro de ouvir histórias assustadoras durante o almoço ou a janta que traduziam causos horrendos que habitualmente acometiam as crianças que não comiam legumes. De susto em susto tome água e bagaço (chuchu) e amargor (jiló) para dentro. Eu não sei o que me assustava mais as figuras oníricas e invenções da Vó ou chuchu e jiló.


Lá na Rua Amor 159, era preciso comer desde chuchu que é doce, até jiló que é amargo. Isso começou muitas décadas antes.

Nyra a sobrevivente, antes dela teve Jupira, Jacira e Juraci que não resistiram ao mal de 7 14 e 21 dias, isso ela contava dizendo que tinha algum mistério com essa coisa do número 7 e seus múltiplos. Acho que  vem daí também a minha piração com a numerologia.


Desde criança na lida da roça, sabia tudo de plantas, temperos e ervas. Era uma alquimista. Nyra quando se viu moça sofreu a separação dos pais e deles também se apartou saindo do interior pra Cidade Grande. Decidiu ter outros rumos na casa de parentes. Sofreu um bocado. Era da roça e logo aqui foi cuidar de casa de madame.


Conheceu o amor de sua vida Tony, este só conheço por foto. Com vô Tony teve cinco filhos: Maurinho, as três Marias e Titi. Titi também só conheceu o pai no retrato, ainda estava no ventre quando Tony foi ao Orun. Dessa ausência sofrida por anos ouvi João Nogueira na presença de Titi, sem entender porque seus olhos marejaram:


Num dia de tristeza me faltou o velho. E falta lhe confesso que ainda hoje faz” 


Nyra negra índia enviuvou aos 30 anos, tão jovem! 

Dizia com brilho nos olhos que Tony havia sido melhor par, companheiro, pai e amante. Encasquetou que essa morte repentina foi coisa feita na macumbaria por causa de uma pá de pedreiro. Onde já se viu morrer por causa de uma pá?

Eu Pensava. Nyra odiava a pá, a macumba e o antigo vizinho. 


Enquanto a gente ouvia a Griotagem da Nyra no almoço e jantar descia goela abaixo tudo quanto é folha amargosa e legume pastoso. Ainda bem que sempre tinha um suco de fruta para adoçar o paladar.

Ainda me lembro de um dia não querer comer. Eu era ruim para isso. Daí foi que eu encontrei o meu maior medo pela primeira vez. Era uma espécie de bicho papão que minha avó chamava de Gundum e se minha mãe estivesse por perto a coisa era ainda pior porque essa figura tinha até trilha sonora. Avó Nyra cantava assim:


“Ai mãe minha... ai mãe minha…

 Eu bem que dizia não andasse de noite

Gundum te pegava 

Gundum te amarrava Gundum sererê 

e tem mais gente lá?”


Quando mãe estava perto ela continuava:


“Sim tem a minha filha da Maria Dois que não come jiló”


E aí avó emendava:


“Então péra lá que eu vou buscar… HA HA HA” 


Era nessa hora que eu fazia careta para engolir o jiló e outras indelicadezas da horta do Sr. Romualdo. Na minha inocência, Gundum era um desses seres fantásticos grandes como o urso, com voz de trovão, sem morada ou lugar e carregava um saco/portal para crianças desobedientes. Lá na Rua Amor,159  o almoço e janta eram regados de legumes e verduras amargosas que diziam fazer bem e deixar crescer. Sei não, só tenho 1,59. Enfim os netos mais novos não comeram nada disso e são bem maiores que eu.


Num desses almoços Nyra contou que se apaixonou demais por um malandro depois da partida de Tony e que daí papo vai papo vem o nego decidiu casar com ela, mas com uma condição:


"- Que deixasse os seus filhos com os parentes porque ele não ia criar filhos dos outros e que ela poderia levar só o menorzinho que dependia dela."


Aí a minha bisa Lina sua sogra lhe falou:


 - Minha filha, vai viver o seu amor... eu cuido dos meus netos.


Foi aí que amei a minha bisa Lina. Pelos laços que minha vó Nyra criou com ela, e que reverberou em mim, pois também não a conheci. Esse fraterno amor preto feminino eu aprendi com Lina, Nyra e com as três Marias que vieram depois. Mulheres aguerridas. Parece que baixou lá na casinha todos os padrinhos das crianças (minha mãe e tios) dizendo:


- Cada um de nós pega o afilhado que é seu e você refaz sua vida Nyra!


No dia desse ocorrido Nyra chorou, como era possível escolher entre o amor, sua sexualidade/feminilidade e os filhos?

Coisas das forjas no patriarcado. Foi aí que no meio da enxurrada de Lágrimas surgiu o jargão da vó Nyra:


“Se eu comer pau eles comem pau, se eu comer pedra eles comem pedra!

Por isso não deixo meus filhos com ninguém e por homem nenhum."


Ela sempre contava essa dor análoga a fome que também sentia, quando queria dizer que era para comer obrigatoriamente tudo que tivesse na mesa sem choro e nem vela e agradecer por ter o que comer. Assim aprendi o valor de cada coisa posta à mesa. E hoje em dia agradeço também ao aprendizado dos afetos e desafetos.


Nyra criou cinco filhos, oito netos, com os bisnetos foi um pouco diferente porque aí uma tal de demência senil ou Alzheimer tratou de tirar dela essas lembranças ruins. Foi uma pena ter levado também as boas. De bisnetos já são nove porque lá na Rua Amor,159 -  a galera foi criada no jiló, chuchu, pau, pedra, caldo de mocotó, Biotônico Fontoura com ovo de pata. É, não tem fraco não! 


Tenho orgulho de ser a primeira neta, mas também me entristeço por saber que a vida da Nyra foi de fazer concessões e abrir mão das próprias vivências pelas nossas. Foi viúva não pode chorar a viuvez porque era mãe, nem pode ser amada outra vez por não querer abandonar os filhos, viu filho primogênito ir ao Orun, trabalhou ou duras penas na casa de madame por mais de 30 anos. Deixou de ser trabalhadora ter sua independência financeira porque decidiu ser Pajé, Griô e avó. Eu como primeira neta tive muita sorte!


Hoje Nyra carrega sorriso esporádico, palavras confusas e olhar perdido, mas às vezes quando estávamos juntas eu cantava as músicas que ela gostava de ouvir segurando sua mão e ficando por perto. Menos do que gostaria porque também me entristeço de nada poder fazer para ouvir de novo a sua gargalhada, sua voz desafinada cantando Maísa ou a trilha sonora do Gundum, mas se hoje ela não tem memória para dividir causos e contos aos domingos quando nos reuníamos todos ao redor de uma mesa lá na Rua Amor - que hoje é 355 - somos seu baú de histórias, somos os contadores de causos dos novos tempos, não mais criativos que a Nyra porém imensamente apaixonados por ela e todas as narrativas que deixou.


Em NOVEMBRO eu peço agô a todos os que vieram antes de mim e aos mais novos também. Louvo a presença de todos os expoentes pretos da nossa diáspora e da mistura indígena que carregamos. Agradeço aos famosos.

Mas para mim a prova real e latente de resiliência, resistência, amor e fé que move os meus Novembros Negros são esses anônimos (ou não), é a presença da Matriarca Nyra do Carmo que hoje menciono nesse escrito. Dela carrego meu viço de ser prosadora, poeta e escritora. Para ela levanto a Bandeira da Negritude que me cobre.

- Vóinha, logo que isso passar nos veremos mais, lhe amo!






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