Rituais de morte | Marilia Kubota

 


MOSAICO Coluna 22    Crônica
RITUAIS DE MORTE
por Marília Kubota

Este ano fui ao cemitério no dia 31 de outubro, para evitar aglomeração. Fui levar flores, acender velas e incenso no túmulo da família. Ali estão sepultados duas avós – mãe de meu pai e madrasta, meu avô e minha mãe. Este é o ritual que costumava fazer. Visitar túmulos de antepassados é compromisso obrigatório, quando se vai visitar parentes. Todos os anos eu levava a mãe para visitar o túmulo da mãe dela, no cemitério do Morumbi, em São Paulo. A visita consistia em limpar e lavar o túmulo, renovar as flores, acender velas e fazer uma oração.
No Dia de Finados, até há pouco tempo, era comum encontrar pratos de comida diante de lápides de famílias asiáticas de origem japonesa. A oferenda de refeições aos mortos em cemitérios é uma tradição ancestral. Escrituras Budistas contam que, um dia, o monge Mokuren viu a mãe morta sofrendo de fome nas profundezas do inferno. A oferenda de uma tigela de arroz a ajudou a aliviar a dor. Daí, veio o costume de oferecer comida e bebida aos mortos.
Não levamos mais, prática proibida pelo governo japonês, por causa da higiene. As oferendas são depositadas em porções minúsculas em pratinhos igualmente minúsculos, no altar familiar, o butsudan ou hotokesama.
Na época da imigração, o governo japonês recomendava não expor o hotokesama aos olhos alheios. A cautela era para que a diferença de crenças não chocasse os brasileiros. A clandestinidade favoreceu o ecumenismo. Assim, a maioria de descendentes de japoneses no Brasil, além de batizados com nomes cristãos, aderiu ao catolicismo. Mas não esqueceu de prestar reverências aos ancestrais.
O Dia dos Mortos no Japão é celebrado a 15 de agosto (O-bon). Neste dia, espíritos visitam familiares vivos. Nas portas de casas, lanternas de papel com velas são acesas para guiá-los. No fim do festival, são entregues aos rios. Segundo a crença, é daí que fantasmas retornam ao mundo sobrenatural.
O mais antigo registro sobre a comemoração do O-bon é de 657 depois de Cristo e faz parte da história da Rota da Seda. Na época, a cidade de Asuka, hoje vila da cidade de Nara, era pólo da efervescência política e cultural, povoada por chineses, coreanos e persas que faziam a rota da seda, entre Pequim e arredores.
A origem da palavra vem de rituais de crença dos zoroastros: uruvan ou urabon, em japonês, campo de energia ligando vida e morte. O zoroastrismo fundiu-se com festivais budistas. As danças conhecidas em festivais japoneses como Bon-odori têm origem em rituais fúnebres. Uma de suas funções é espantar maus espíritos, também reanimados na época.
Há anos sou ateia, mas participo do ritual familiar no Dia de Finados. Fui poucas vezes visitar o jazigo de meu companheiro, no Cemitério Iguaçu, em Curitiba. Ele não foi enterrado num túmulo familiar. Lembro da cena da terra caindo sobre o caixão e lembro que desde março temos mais 160 mil mortos no Brasil por conta da pandemia. Hoje penso na morte com um sinal de que é preciso aprender a apaziguar antes do final. Que embora a vida seja um emaranhado de conflitos, é preciso, um dia, resolvê-los. E não fugir deles.


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