Uma resenha de Marta Cocco | "Uma Diva na passarela estreita do Jabuti"

 

Jerzy Górecki. Fonte: pixabay.com


Uma resenha de Marta Cocco

Uma Diva na passarela estreita do Jabuti


Pela primeira vez na história da literatura produzida em Mato Grosso temos uma finalista em uma categoria literária do prêmio Jabuti. Esse prêmio é considerado o Oscar do livro brasileiro. Michele Sato, em 2006 também chegou à final, mas na categoria acadêmico-científica, e Joca Terron, em 2012. Mas Joca Terron, embora nascido em Mato Grosso, não publica por aqui e chegou por uma grande editora, a Cia das Letras. Divanize se inscreveu no prêmio com o livro de contos Passagem Estreita, editado pela Carlini & Caniato sediada em Cuiabá.

Se Divanize ficará com o primeiro lugar, é o de menos. O de mais foi ter conseguido essa distinção, num prêmio que tradicionalmente destacou autores e autoras famosos/as, de grandes editoras, de grandes centros. (Embora essa noção de centro já seja questionada há tempos e, geograficamente falando, Cuiabá esteja no centro geodésico da América Latina).

Divanize Carbonieri é uma escritora com um talento extraordinário e um conhecimento consistente da língua e da vida, combinados a uma forte consciência de seu lugar no mundo. Um mundo regido por uma lógica que tem elevado o consumo, a descartabilidade e o culto às aparências  a uma potência inacreditável nos últimos anos. 

Reconhecendo-se nesse lugar, mas não necessariamente ajustada a ele, a autora criou personagens peculiares, algumas com capacidade de enunciar episódios e interrogações ou apontamentos com sua própria voz, enquanto outras necessitaram de uma narradora em terceira pessoa para se apresentarem a um universo ainda hostil, com suas dores, traumas, sentimentos confusos, impotências, desajustes e incompreensões. Não é fácil fazer da vida real, experimentada por tantas mulheres todos os dias, matéria de ficção. Porque a ficção exige um tratamento estético, um domínio da trama, uma atenção à verossimilhança e, sobretudo, um profundo mergulho na alma humana.

O mundo, à exceção, talvez, de algumas comunidades da pré-história, tem sido uma passagem estreita para quase todas as mulheres.  Há bases míticas e filosóficas que ajudam a compreender esse lugar de sujeição, bem como as lutas feministas travadas nesse campo minado. Em grande medida, o feminismo teve impulso nos ideais democráticos de igualdade e liberdade que marcaram a mudança de um sistema feudal para uma economia industrial, especialmente na Europa. Evitando uma digressão extensa e uma contextualização adequada, pode-se resumi-lo como um movimento que procura compreender e combater a cultura androcêntrica, gestada pelo pensamento de que: a mulher era um ser inferior, com menos capacidade mental que o homem, por isso tinha de ser submissa, não tinha direito à herança, à propriedade, ao voto e ao mundo fora dos círculos domésticos em que parir filhos/as e ser “dona de casa”(leia-se trabalhadora doméstica –  para as pobres, ou administradora do lar – para as ricas), eram as concessões.  À exceção dos círculos da prostituição, em que a objetificação do corpo é extrema.

Aos poucos, essa passagem estreitíssima foi sendo alcançada, ainda que distante dos horizontes de igualdade em muitos contextos. Não tenho estudos suficientes para afirmar se a conquista é resultado das lutas feministas, ou dos grandes erros de seres humanos (de subjetividade masculina - sedentos de poder e domínio) que engendraram uma guerra atrás da outra. Ou a combinação das duas coisas. O fato é que o mercado de trabalho, fora dos círculos restritos, abriu-se para as mulheres quando elas tiveram de dar conta das fábricas e lavouras, enquanto pais, irmãos, maridos e filhos morriam nos campos de batalha, iludidos por uma noção de Pátria e ignorantes das verdadeiras razões pelas quais alguns, com suas “inteligências”, decidem pelo confronto belicoso. Foi essa mentalidade “viril” que criou as bases ideológicas para as instruções comportamentais que fariam das mulheres animais a serem adestrados: como se vestir, como se portar diante do pai e do marido, como se portar nos espaços públicos, como abafar seus desejos, inquietudes e questionamentos.

Fazendo uma passagem muito rápida e panorâmica pela história, depois das grandes guerras, o sonho de um sistema diferente, com igualdade de condições materiais e de direitos que a filosofia marxista parecia prometer, não aconteceu. Num contexto em que os destroços do nazi-fascismo eram sentidos (embora não necessariamente compreendidos), o totalitarismo de Stálin e outros foi uma frustração. As mulheres precisaram repetir o mantra: ainda não foi desta vez. Ao chegarem em casa, exaustas do trabalho, deparavam-se com homens cujas expectativas sobre elas estavam moldadas pelo pensar androcêntrico.

Examinando esse mundo em que  os deslimites da maldade erigiram cruzes, acenderam fogueiras, abriram válvulas de gás e explodiram o átomo, por onde as mulheres deveriam procurar a saída?  Talvez tenha sido em meio a essa angústia que Simone de Beauvoir, provocada por Sartre, buscou pensar o que é ser mulher numa perspectiva existencialista.

De lá para cá, muito e/ou pouco mudou, conforme nossa vista alcança. Nos situemos neste ano de 2020. Quantas vezes testemunhamos os princípios democráticos sendo usados para reforçar a moralidade tradicional? Observemos as redes sociais: a força da opinião pública, inclusive de mulheres, não tem sido cruel com as suas semelhantes que questionam os padrões de adestramento impostos? Já vi mulheres se anunciando como femininas em vez de feministas, sem ao menos saberem o que está por trás dessas noções, sem sequer imaginarem como os aparelhos ideológicos formulam e manipulam os conceitos.

Fiz esse longo volteio para acessar a chave do livro de Divanize Carbonieri. Noite adentro relendo os contos para achar por onde puxar o fio das histórias, acabei por ceder aos impulsos da intuição. Cada conto tem seus mundos. Alguns até inimaginados por nós. Mas, invariavelmente, marcados por violência, desprezo e incompreensão na leitura de corpos fora dos padrões estabelecidos; na leitura das condições de trabalho fora e dentro de casa; na leitura do modo de expressão determinado pelo acesso à escolarização e ao conhecimento; na leitura, em suma, de mulheres ainda confusas entre a ânsia de serem sujeito – donas da voz, e o sistema que sempre encontra novas formas de realocá-las na condição de objetos.

Por esse fio é que pude ler: “Fia”, a personagem que acha mais fácil uma loja não ter grandes portas para atravessar com seu corpo esquisito, enquanto a narradora se diz contrariada em contar da feiúra, quando seria mais aprazível narrar uma mulher bonita, de bons modos, em mesa bem arrumada; a protagonista de correnteza, parindo dentro da canoa e fazendo das águas um meio de purificação,  libertação, ou seu extremo, o afogamento; a moça que escolhe um vestido azul brilhante para uma ocasião simbólica que representava a travessia árdua de gerações anteriores; a atravessante que descobriu o medo como um meio de sobrevivência, numa terra em que sempre há alguém querendo tirar alguma coisa de outro, inclusive o fundamental; a palestrante inferiorizada pela plateia porque seu discurso e sua aparência não correspondiam às expectativas, e assim por diante. Muitos são os momentos fortes do livro, quando se vai lendo a secção dos corpos, da linguagem, da consciência. Quando se vai lendo os sonhos, as crenças, as geografias, as visões do ser-estar na carne e osso de mulheres de algum modo marginalizadas. Destaco, do conjunto, alguns trechos instigantes:

 

“...as loca fica discutindo na internet pra ver quem tem mais razão de uma coisa que na verdade não altera a bagaceira de nenhuma delas não vai ter emprego mesmo pras que sobrarem da matança geral...”

“... então foi aí que eles inventaro que elas tinha que estimá eles inventaro esse negócio pruque se elas fosse odiá eles como eles merecia era perigoso né pruque elas podia se vingá e matá eles...”

“... A posse das mulheres alternava-se entre os homens, pois era o líder que decidia de qual deles elas teriam filhos ano a ano. No love...”

“... Ó Dona Esmeraldina, pelo amor de Deus,  a senhora deixa de bestice e sai logo desse ninho porque periga a gente morrer tudo à míngua. Quando foi que a senhora merendou por último?...”

“Considera-se a morte uma espécie de sono. Quando alguém morre, diz-se que descansou. O caixão ainda se parece com uma cama. Mas, entre os vivos, ninguém sabe ao certo o que se passa quando os olhos se cerram pela última vez. Dessa forma, é melhor não se deter sobre isso. Muito mais importante se revela a luta renhida pela vida, a resistência diante das dificuldades.”

 

Com esse trecho, que enfatiza a resistência, vou encerrando minhas impressões ainda prematuras sobre um livro que preciso ler, pelo menos, mais uma vez.  Não é uma leitura tão fácil.  A estruturação da trama não é comum. A posição das narradoras é marcada pelos lugares sociais menos privilegiados e conflituosos, então, não se pode dizer que estamos diante de narrativas com aparente neutralidade. Isso de neutralidade nem existe. Por isso, a leitura foi sendo guiada por uma dicção feminista em espaços estruturais dominados pela lógica do capital e do patriarcado. Isso não quer dizer que na vida e na ficção não existam homens conscientes, sensíveis e solidários que, em muitas circunstâncias, também são vítimas dos padrões convencionais. E que não existam mulheres, por força da ignorância, ou da má fé, “adaptáveis” às convenções, principalmente quando a “grana” é conveniente.

Por fim, com todas as Letras, é preciso repetir que Divanize Carbonieri  chegou à passagem estreita do Jabuti. É finalista. Como? Como mulher, escrevendo a partir de experiências pessoais e coletivas. Quando? Em 2020, com um livro publicado em 2019. Onde? Coincidentemente, num país governado por um homem que disse (rindo, ou sério, ou exaltado), entre outras coisas, que teve quatro filhos homens e, por uma fraquejada, uma mulher; que se fosse empregador e tivesse de optar entre uma mulher e um homem, empregaria um homem porque mulher engravida; que se dirigiu a uma mulher num plenário chamando-a de feia e, portanto, não merecedora nem de ser estuprada. Não, esse homem não veio de outro planeta. Faz parte do mesmo tecido cultural em que estamos situados/as. E nasceu, salvo por cesariana, da passagem estreita da vagina de uma mulher, sua mãe. Paremos por aqui, para que não se julgue esse parágrafo com finalidade panfletário-partidária, nem no espectro da polarização politiqueira que vem se desenrolando. Quem o fizer, estará sendo míope.

No mais, como leitora, devo agradecer à Divanize por me proporcionar tantas reflexões, e parabenizá-la por alcançar a passarela estreita do Jabuti estando, primeiro entre dez, agora entre cinco finalistas. Estou na torcida pelo primeiro lugar. Mas, se não vier, a conquista já é imensa. Parabéns!


https://loja.tantatinta.com.br/produto/passagem-estreita/


Marta Cocco é escritora, professora universitária, cadeira nº 18 da AML, líder do grupo de pesquisa LER (UNEMAT/CNPq).

 


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