O Natal da chuva que passa | Marilia Kubota

MOSAICO Coluna 26    Crônica

O NATAL DA CHUVA QUE PASSA
por Marília Kubota

Este é o meu primeiro Natal virtual. Como em outros, estou com família. A chegada do verão está marcada oficialmente para esta terça-feira. Já faz calor infernal. Em quase todas as tardes, há tempestades de verão.

Lembro de tempestades passadas na praia. Eu tomava banho de chuva e me sentia feliz. Neste fim de semana, por conta da pandemia, fui tomar banho de mar pela primeira vez na era covid. Não foi uma cerimônia inaugural. Fui de máscara e apressada.
Banho de chuva e banho de mar evocam batismos. A água que purifica, água benta.

As tempestades de verão na casa de praia lembram, além de purificação, a luta com as águas. As chuvas que destelhavam a casa. Baldes e bacias por todos os cantos. Rodos e panos de chão. Assim, também me vi, certas tardes, enxugando os estragos do acúmulo nas nuvens.

Foto: Rogério Dezem

Além desta cena prosaica, lembro de um filme de John Houston, "Os vivos e os mortos". A história é uma adaptação de um conto de James Joyce. No conto, a mulher confessa ao marido que teve um caso na juventude com uma pessoa que morreu. A cena final é do marido, enciumado, admirando a chuva que cai sobre os vivos e os mortos.

Neste fim de ano, escorre água sobre 185 mil túmulos. Água que não consegue lavar o luto de famílias que perderam avós, pais, mães e filhos. Luto cruel, lavado sob a indiferença de quem sai para festejar e comprar presentes ou planejar a viagem de férias.

Depois da tempestade, as gotas continuam a pingar do telhado. O barulho das gotas se mistura ao barulho de carros na rua. Um motorista, celebrando o fim da tempestade, passa com o rádio ligado a todo volume. Há vozes de conversas. Ouvindo estes barulhos, as lembranças de chuvas do passado silenciam.

Neste Natal, os sentidos se misturam. Olfato, audição, visão, tato, paladar. A tevê está sempre ligada para ouvir as notícias. Talvez porque ouçamos todos os dias, a anomia, a surdez, a cegueira nos blindam. Não é um Natal de novo normal. É um Natal em que perdemos 185 mil irmãos no Brasil e mais de 1,5 milhão no mundo. E seguimos para a ceia e em direção ao Ano-Novo como se pudéssemos fugir da morte.

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