Preta em Traje Branco | Maternidade e Aprendizado | Crespo Sim

 

Coluna 2

Maternidade e Aprendizado

Consciência racial através de um nascimento

Desde o meu primeiro mês de gestação, fui levada a refletir sobre condição racial, sobre negritude, sobre o que é pertencer a esse grupo, e o que é ser negro neste país. Filha de mãe preta e pai branco, sempre fui definida como “morena”, “parda” por conta do tom de pele mais claro. Logo no início da gestação passei por uma experiência atravessada por questões raciais. As pessoas faziam inúmeros questionamentos, do tipo:

_ como será que vai ser o cabelo da bebê?

_ será que vai ser morena?

_ Cor de jambo?

_ será que vai ser preta?

Como se não bastasse essas falas racistas, ainda ouvia: Você vai ter que passar muito óleo na mão para fazer trancinhas no cabelo da bebê, e riam...

Chegavam a fazer desenhos com duas bolinhas pretas dizendo ser a representação da minha filha. Não tinha graça alguma, pelo contrário, me perguntava a todo instante o porquê das pessoas se incomodarem tanto com a cor da pele da minha filha? Porque se incomodavam em como seria o seu cabelo?

Eu não tinha respostas, e por muito tempo essa angustia, ficou dentro de mim. Quando minha filha nasceu, reparavam no seu cabelo, olhavam as pontas dos dedos, diziam que pelos dedos dava para saber a “cor” que ela seria. Na maternidade me surpreendo com uma fala de minha mãe, mulher preta, e filha de nordestinos, que diz ao ver minha filha: “Até que não é tão preta”. Hoje eu sei, não tem outro nome para isso, é Racismo! Em meio a tantos questionamentos, e angustias, fui procurar estudar, pesquisar, ler alguns textos, e tentar encontrar algo que me trouxesse respostas. Queria entender, eu precisava entender mais que tudo.

E como começar?

Apaixonada por capoeira comecei a me aprofundar na sua origem, sua história, a verdadeira história do povo negro, assuntos que são negados nos bancos escolares, e foi nessas pesquisas que aprendi, que a tal princesa Isabel que assinou a Lei Áurea, não deu de bandeja a liberdade aos escravizados, os negros não foram libertos, continuaram a mercê, nas ruas, sem trabalho, se desdobrando para sobreviver. Aprendi, que durante muito tempo prevaleceu no Brasil o mito da democracia racial. Na escola, assuntos como eugenia, a formação dos quilombos, a revolta da chibata, não são abordados. Fui ensinada que os negros foram trazidos para o Brasil, para trabalharem como escravos, e ponto. Sempre ouvi a história contada do ponto de vista do colonizador. Fui em busca da verdadeira história. Conheci o CEERT (Centro de Estudos das Relações do trabalho e desigualdades) no qual ganhei muitos livros ao fazer uma visita, passei a ler vários artigos, textos, livros, sites como Geledés (Instituto da mulher negra), Blogs, e cada vez mais que eu buscava essa consciência racial, eu entendia o porquê de tudo que passei, e ao mesmo tempo sentia muita tristeza. Nossa história por séculos apagada. O racismo escancarado da sociedade é fruto e herança de um sistema escravocrata que perdurou por séculos, e que contribui até hoje para a mentalidade racista, para que até nos dias de hoje o negro ainda seja visto como raça inferior. Por muito tempo o referencial de beleza, o referencial de padrão de indivíduo perfeito sempre foi o de um ideal branco, já que foram introjetadas imagens negativas acerca do que é ser negro. O racismo é um sistema de opressão, que fere, mata que nega direitos, onde o ser humano julga pela cor da pele.

Formei-me em pedagogia em 2010, pelo Centro Universitário Uni Sant’Anna, não foi fácil, trabalhava de telemarketing, ganhando muito pouco, cheguei a conseguir uma bolsa por 06 meses, em um programa chamado “Jovens Acolhedores”, com adolescentes da fundação casa, que me ajudou e contribuiu muito para minha formação pessoal e profissional também. A maneira que encontrei para me aproximar a realidade dos jovens, à linguagem, de uma maneira dinâmica, e contextualizada, foi o rap. Que, aliás, muito do que aprendi inclusive consciência política, social, cultural, e racial, foi também através das letras de rap. Tempos muitos difíceis, não tinha sequer sapato para ir à faculdade, uma vez minha mãe encontrou um e me deu, e usei por muito tempo. E assim foi até me formar. Na faculdade também não aprendi sobre as questões raciais, sobre a Lei 10639/03 e sua aplicabilidade nas instituições de ensino, não aprendi sobre a história e importância do movimento negro, autores e autoras negras, enfim, tudo muito vago. Ingressei na Rede pública de ensino no Município onde moro, em 27 de maio de 2011, ainda com pouca experiência na educação, comecei meu trabalho com as crianças no Centro de Educação Infantil, a partir da capoeira. Com músicas, movimentos simples como ginga, cocorinha, brincadeiras, e roda de histórias. Assim, passei a observar que por toda a escola não havia imagens de crianças negras, os murais eram em sua maioria de personagens da Disney, ou do “universo infantil” como turma da Mônica, Hello Kit, Mickey, e por ai vai... Comecei montar painéis e bonecas com papelão, para contar histórias, e fazer os murais, aprendi a fazer bonecas de garrafa e bonecas de pano, que damos o nome de Abayomi (que traz felicidade e alegria). A primeira história que contei foi “A lenda de maculelê”, que aprendi com meu mestre de capoeira, com o qual adquiri muito conhecimento.  Na escola em que minha filha estudava, não havia murais ou imagens que a representasse, nem as demais crianças. Comecei a observar em todos os lugares em que eu ia, desde as salas de dentista, de um consultório nos postos de saúde, as paredes das escolas, na TV, nas novelas, nas revistas, nos livros infantis, em tudo. Em nenhum lugar havia representatividade. E assim cada vez mais as pesquisas faziam parte da minha rotina. Minhas referências bibliográficas começaram a aumentar, assim como os meus estudos acerca de uma educação antirracista. Sempre conversei com minha filha sobre o racismo, sobre identidade, sobre ela sentir orgulho de ser uma mulher negra, sempre reforcei para nunca sentir vergonha do seu cabelo. Sentia medo do que pudesse vir a passar. Mostrava livros, imagens, histórias, tudo o que eu aprendia em cursos, palestras, encontros, oficinas, leituras, eu repassava a ela, para alimentar sua autoestima, fortalecer sua identidade, e digo, não é uma construção fácil. Ainda assim, não teve como evitar, o racismo está enraizado na sociedade, é perverso, machuca. Se durante a educação infantil, a aplicabilidade da lei 10639/03 ainda ocorre de maneira muito tímida, sem representatividade, no ensino fundamental, não é diferente. A escola é o local onde normalmente acontecem os primeiros episódios de racismo e é onde as crianças se percebem negras e entendem o peso que sua cor tem na sociedade, e foi assim com minha filha. Começaram as piadinhas sobre seu cabelo, e sobre a cor de sua pele. Logo, começou a não querer mais ir à escola, e só queria ir com cabelo preso, com “coque”. Foi um período muito doloroso, principalmente como mãe. Ser mãe de uma criança preta é viver com o medo constante, principalmente quando se inicia a fase escolar. Sei que não posso viver isso por elas, o que posso é encorajar, ensinar e orientar. Em um domingo, a convite de uma amiga, fomos à marcha do orgulho crespo, na avenida paulista, em frente o MASP, e foi ali, que minha filha passou a ter orgulho do seu cabelo, da cor da sua pele, ficou encantada, admirava as meninas e meninos com o cabelo como o seu, admirava os turbantes, os penteados. Foi ali, na marcha do orgulho crespo, que minha filha se reconheceu como mulher negra, e passou a ter consciência racial, passou a entender e, a saber, o que é o racismo. E foi assim também que nasceu a poesia em homenagem a minha filha, Crespo sim!  Representatividade importa muito, e a falta dela causa dor, faz com que o psiquismo seja marcado, causa negação da identidade. Nossos meninos e meninas, nossos jovens, precisam sentir-se representados, precisamos combater o racismo, o antirracismo é uma luta de todos nós, como diz Ângela Davis, “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Infâncias pretas importam. Não podemos ignorar o racismo, não podemos cruzar os braços e “achar que é natural”, porque não é. É crime!!! Oswaldo Faustino ressalta bem, “Quem não se vê, não se reconhece, quem não se reconhece não se idêntica e tem baixa autoestima”. 

_ O que cada um de nós está fazendo para combater o racismo?

_ O que cada um de nós está fazendo ativamente para uma educação antirracista?

_ observe ao seu redor, observe os espaços em que frequenta, em que trabalha, tem representatividade?

Crianças que não tiverem em casa, no seu convívio familiar, representatividade, que não tiverem sua identidade fortalecida, certamente, terão questões de baixa autoestima, e serão forçados a entender o racismo da pior maneira, pela dor. E embora o racismo não tenha seu nascedouro na escola, temos a certeza de que ele perpassa pelo ambiente escolar, e se faz necessário e urgente uma educação antirracista.

Representatividade já!

Representatividade importa sim!

E termino dizendo:
_ Minha maior felicidade enquanto uma mãe preta, que nasceu e cresceu na periferia, é ver minhas filhas crescerem sem virar estatística! É ver minhas filhas crescerem sem medo de ser feliz. 



Crespo Sim!

Para minha filha Larissa

Reprima seu preconceito

E pare de me julgar,

Meu cabelo é sim black power

E eu não vou alisar!

Durante muito tempo me reprimi,

A vergonha e o medo

Tomaram conta de mim

Me escondi,

Ofensas, piadinhas, discriminação,

E acreditem, não para por ai não!

Eu era o alvo de tamanha opressão,

Me reconheci no sofrimento, pela dor,

Até o dia em que dei um basta

E soltei os meus cabelos,

E não aceito qualquer definição,

Crespo sim! Ruim não!

Ruim é o seu preconceito, sua ignorância,

Sai da frente com seu racismo

Que eu vou passar,

Tenho black sim,

Não preciso de chapinha

Para me sentir rainha!

E não aceito qualquer definição

Crespo Sim! Ruim não!


*foto de acervo pessoal de Luciene Amor





 Luciene Amor36 anos, Mãe, Professora de Educação Infantil da Rede Pública Municipal- SP, graduada em Pedagogia pela faculdade Uni Sant’Anna em 2010. Amante da capoeira, da poesia, do Rap Nacional, Poeta do Sarau Elo da Corrente. Atualmente é formadora do curso - Educar para a Igualdade Racial: Por uma educação antirracista - pelo instituto JPD, e participa de formações em oficinas voltadas à Educação Étnico Racial em instituições Escolares.

Instagram: @lu_capoeira_





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