Santiago insurgente | Marilia Kubota

  


MOSAICO Coluna 21    Crônica
Santiago Insurgente
por Marília Kubota

No dia 17 de outubro de 2019, cheguei a Santiago para participar do 7º Encontro Internacional de Editoras Cartoneras. O plano era acompanhar os três dias do evento e conhecer a capital chilena e arredores. Amigos de São Paulo já estavam lá.
Na noite deste dia aconteceria a abertura, na Biblioteca Nacional de Santiago. Ao embarcar no metrô, um amigo falou sobre o movimento pula-catraca, realizado por estudantes, em protesto contra o aumento de tarifas. Na estação, no vagão e nas ruas, vi rostos melancólicos de chilenos, mestiços e com traços indígenas, contrastados ao rosto sorridente do presidente e empresário bilionário Sebastián Piñera.
Na madrugada de 18 para 19 de outubro, Piñera decretou Estado de Emergência. Estações de metrô haviam sido queimadas pelos manifestantes. Ver os canais CNN Chile e Telesur assustava. Parecia haver incêndios e saques em toda a cidade. Mas, era possível sair nas ruas.
No primeiro dia de Estado de Emergência, o grupo quis passear até Cerro Santa Lúcia, parque que fica no centro da cidade. No trajeto, vimos estações de metrô fechadas e queimadas e restos de barricadas. Numa feira popular no meio de condomínios, ouviam-se manifestações de cacerolazo vindas das janelas.
O encontro de cartoneros acabou acontecendo num bar de amigos. Algumas cartoneras estavam envolvidas nos protestos. Pelas redes sociais, viam-se manifestações pacíficas e festivas, além do aparato repressivo contra elas. Como estrangeiros, decidimos nos preservar. Nossa missão era comprar água e pão, além de encontrar um lugar para almoçar. Pelas redes, divulgamos os protestos e faríamos denúncias de abusos.
No domingo, parte do grupo, embarcando de volta ao Brasil, estava apreensivo. A tevê anunciava, não havia água nem comida no aeroporto. Voos cancelados por falta de planejamento de uma empresa latina. O toque de recolher decretado sábado impediu funcionários de irem trabalhar. Perdemos uma das amigas nesta noite. Ela foi ao aeroporto, o voo foi remarcado para o dia seguinte. Resolveu voltar para o hotel. O motorista de táxi que a trouxe, ao se deparar com uma barricada, a abandonou na rua. Ela ficou sem crédito no celular e sem comunicação conosco. Nossos amigos acionaram a polícia e a embaixada do Brasil. Ela só apareceu no hotel pela manhã. Como estava cheia de malas pesadas, não pode voltar andando. Pediu abrigo em um prédio e passou a noite acordada, ali.
Depois de passado o susto das ações incisivas, testemunhar a revolução chilena foi um sopro de esperança. Os desmandos vêm a galope, as conquistas sociais a passo lento. Mas, às vezes, algo muda na hierarquia de injustiças, com um tsunâmi de indignação nas ruas.

(Esta crônica está no livro "Eu também sou brasileira", publicado pela Lavra Editora)

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