Um conto de Carmen Moreno | "Dora"

 

Mira Schendel


Um conto de Carmen Moreno

Dora


Cena 1- Dois dias depois

 

As pessoas ganharam uma importância especial, depois da traição. Valem mais, depois da traição. Embora tudo o que não seja humano, embora o Sol tenha-se tornado inútil, eu gosto de forma especial quando alguém me dirige a palavra, ou quando o bancário sorri ao me entregar o troco. Alivia-me alguma parte da alma açoitada. Ouço o desconhecido com interesse, porque é preciso agarrar-se a todos quando se sofre. Todos os assuntos distraem o espírito obcecado pela mágoa. O amigo é urgente. Fisiológico. Procuro vários, seguidamente, e disseco meu enredo, repetidas vezes, como a me esvaziar pela exaustão.

 A traição já não me surpreende. Conto-a e reconto-a, e, às vezes, de tanto repeti-la, parece-me não mais ser a mulher traída. De tanto repeti-la, a emoção mecaniza-se, a dor se amortece. Esse exercício me distancia por momentos do peso de um sofrimento mudo, do exílio da dor não compartilhada. Porque há o momento em que a solidão se impõe e ninguém, além de mim, pode estar presente. Porque sempre há o momento em que o salão silencia e o amigo se despede. Porque o amigo, por mais íntimo e generoso, sempre se despede. Se ao menos nesses instantes eu estivesse sozinha, dormisse sozinha, tomasse banho sozinha, dirigisse meu carro sozinha... mas ela me acompanha, e sua presença avarenta toma todos os espaços do meu pensamento, do meu coração sobressaltado, dos meus músculos sedados de Lexotan: a dor não cochila. Insone, não se distrai.

Antes, quando estávamos a serviço da felicidade, dois dias antes, quando nos fundíamos desnudos sob o lençol branco, nada que não fosse nós importava-me. Ninguém, além dele, atenderia melhor meus interesses, saciaria melhor meus ouvidos curiosos de casos. Ninguém, além dele, seria melhor escolha, melhor programa para minha alegria.

Agora, que ele não está mais aqui em peso e forma sobre mim, ocupa um espaço ainda maior do que quando tinha corpo e sexo. Virou um gigante de insuportável onipresença, tomando todos os poros do meu pensamento viciado. Vem, com sua presença corrosiva e fantasmagórica. Vem, com a amante. Não está só.

Meu pensamento acolhe a outra e mistura-os, desfigurando em mim sua imagem única de homem que era meu. Meu homem agora surge contaminado, com registros estranhos na pele. Sua pele reage a estímulos que não vêm de mim. E eu vejo mãos estranhas percorrerem sua intimidade de homem que era meu. Sua intimidade, antes, indivisível. Indevassável. E vejo a boca, igualmente estranha, que projeta uma língua em sua nuca. Fecho os olhos para expulsá-la de seu corpo de amante que suspira um suspiro inédito, um suspiro que, desse modo, jamais presenciei. Um suspiro que, desse modo, jamais provoquei. A boca tem contornos difusos, que me escapam. E eu abro os olhos para expulsar também essa boca inimiga dos seus lábios úmidos de homem. Homem que nunca foi meu. Abro os olhos e encontro-os numa cama desconhecida, no ambiente árido que a minha mágoa compõe, em detalhes, com imaginação de artista.

 

Cena 2 - O golpe

 

Empurro a porta do banheiro e sento-me no sanitário. Piso o pedal do cesto e, embora o ato mecânico de atirar o papel nunca me leve a acompanhar seu destino, meu olhar, que tem mesmo um hábito de entranhas, fixa-se no maço de cigarros mergulhado na lixeira. Firmo a ponta do chinelo no pedal, e entendo que outra coisa, e não o pequeno invólucro de cigarros, toma minha atenção. A caligrafia dele escapa do maço semidestruído, amassado. A letra dele. Apenas duas sílabas, nítidas, que, apartadas da palavra, não formam nenhum sentido. Duas sílabas projetadas para fora, como uma cabeça erguida, de súbito, sobre um biombo. Como dois olhos destacados na noite, atrás de um muro: mento. Eu leio: mento. Mento. Dois olhos iluminados, surpreendidos na noite, dilatados... delatando-se. Mento. A caligrafia do meu marido: dois olhos quase rendidos. Quase confessos.

Minha extrema intimidade de tudo o que diz respeito a ele, de tudo o que ele produz, diz, pensa... essa real e ilusória intimidade, desperta minha curiosidade sobre aquele pedaço de papel, enfiado no maço de cigarros, e seu conteúdo. No maço de cigarros desse homem cujos hábitos julgo conhecer em minúcias. Conheço a marca, conheço seu costume de amassar o pacote e jogá-lo no cesto. Desconheço, no entanto, por que um pedaço de papel com sua letra estaria ali, quebrando a rotina daquela cena.

Curvo-me um pouco, e, com uma delicadeza escrupulosa, junto dois dedos em forma de pinça para puxar o papel com a letra do meu marido. Hesito e recuo, sentindo-me risível e inadequada. Levanto-me. Desisto da ação, sobretudo por desconhecer o motivo que me levaria a executá-la, pois nada que a justifique me socorre a mente. Ajo por instinto. E, por instinto, sobretudo de asseio, desisto de enfiar a mão no cesto de lixo.

Abro a torneira. Volta o desejo de abrir o cesto. Lavo as mãos e o rosto, num movimento contínuo que me leva do sabonete à água, da água novamente ao sabonete, como uma compulsão, uma ação que não se esgota. E por mais que eu me lave, a água não limpa minha vontade de ser insólita, de ser insana. A água não limpa meu pensamento, que agora já se revela. Não é mais um mero impulso sem forma. Agora tenho a consciência, tardia e óbvia, de que, qualquer que seja o conteúdo daquele papel, não sei tudo a respeito de meu marido. E a certeza de não saber tudo a respeito de meu marido me lambuza de pânico e desamparo.

Fecho a torneira. Várias imagens recentes atropelam-me, como um filme acelerado e desconexo. Permaneço ali, com as mãos apoiadas na pia, sustentando o peso das lembranças do nosso cotidiano que, na verdade, guarda algumas reticências. De súbito, uma lembrança congela meu estômago. Uma suspeita concreta que me faz puxar, com a própria mão, a tampa do cesto, desequilibrando-o e derrubando-o, pelo excesso de força. Quase todos os papéis espalham-se pelo chão. Puxo do maço a ponta de texto com a letra dele: mento. Descubro: envolvimento. O pedaço de papel não registra mais nada. Envolvimento.

Mas havia outros dentro do maço. Pego o invólucro e o desamasso com tamanha gula, que vários picotes de papel caem, misturando-se aos outros sujos, da lixeira, despejados pelo chão do banheiro. Meu coração, intuitivo, trota.  A intuição conhece a verdade que a lógica desmente.  A verdade, que meu coração desritmado pressente. Talvez já tenha passado por ali... ou se recorde da dor que não viveu. Ou a esteja vivendo de novo.

Pego um outro caco de folha e me golpeio com um fragmento de frase: vou sentir sauda. Noutro pedaço: Dora. Ajoelho-me no chão e mergulho as mãos aflitas no caos de merda ao meu redor. Não tenho mais cuidados, asseio ou equilíbrio. Sequer tenho pensamentos. Não penso mais. Também não intuo, pois que a intuição é uma forma inteligente de pensar com a alma. Não penso, não intuo. Sou bruta.

Estico o pijama de malha, e nele recolho todas as pequenas partes daquele quebra-cabeça, procurando, minuciosa, se não teria deixado escapar alguma palavra valiosa de sentido. Saio do banheiro em disparada, deixando a porta aberta e a desordem explícita aos olhos da empregada, com quem cruzo no corredor. Ela pede orientação sobre o jantar à luz de velas. Faço dez anos de casamento. Não respondo nada.

Tranco-me no quarto e espalho meu tesouro pelo chão. Procuro o nome da desconhecida. Encontro: Dora - Dife - vida dupla. Alguns pedaços, de tão diluídos, sequer os compreendo: Esp - Voc. Noutros, a tinta da caneta, manchada por algum líquido, desfigura completamente o entendimento das palavras. Imagino que não vou conseguir, embora o desânimo momentâneo não me detenha.

Tenho acesso a partes da história de forma desordenada, à medida que monto as frases. Não me dou conta do tempo despendido, mas meu mosaico, mesmo cheio de lacunas, está, enfim, acabado. Releio, então, a carta de meu marido, tentando acalmar a respiração e organizar minha confusão interna. Pingos grossos resvalam pelo meu rosto, à revelia, subvertendo minha dor trancafiada:

Dora,

Você me perguntou por que pedi para mudar de departamento, e eu acabei evitando responder

Preciso pôr um fim nessa convivência que inventamos pra nós. Minha mudança de departamento foi, realmente, um primeiro passo importante, pois, naquela imensidão de empresa, não vamos nos esbarrar com tanta frequência.

não almoçaremos mais juntos, o que, para mim, é um grande,

pois sua presença é muito envolvente.

muito talento para vida dupla. Esse nosso processo de sedução. Um casamento longo como o meu passa por fases de menos envolvimento, as pessoas ficam mais práticas ou menos

minha mulher, embora saiba que vou sentir saudades. Porque, no casamento, as fantasias com outras pessoas são inevitáveis. Você está sendo Espero que me entenda. Espero que me perdoe a covardia. Na verdade, espero que

 

Cena 3 - O aniversário de casamento

 

Meu marido toca a campainha, fugindo ao costume. Carrega num dos braços um ramo de flores, no outro, uma caixa colorida. Viro o rosto, e o beijo pega no canto da minha boca. Bebo a segunda taça de vinho e me sinto um pouco anestesiada. A mesa já está iluminada para o idílio e digo-lhe que tenho pressa de jantar. Ele está tão empolgado com a ambientação, que não percebe meu olhar vazado. Estou de coque, como ele gosta. O vestido novo é preto e decotado, como ele gosta. Elogia-me com um sorriso escancarado. Está feliz. Uma felicidade límpida, ingênua. A ingenuidade que precede toda morte súbita. A ingenuidade de quem desconhece que, em questão de segundos, um disparo saqueará sua vida.

Digo-lhe que também tenho um presente para ele, e aponto o embrulho sobre a mesa. Ponho as flores e a caixa sobre o sofá e ele me pergunta se não tenho curiosidade de abrir. Peço-lhe que veja primeiro o seu presente. Desconheço a quantidade de energia gasta para organizar aquele ritual até a noite. Não sei como orientei o jantar, como me maquiei, como calcei os sapatos, como não liguei para o seu trabalho, para que ele viesse correndo, pois era uma emergência! Não sei com que força levantei do chão do quarto para tomar banho. Não sei de onde veio essa mulher racional, mas sei que não suportaria viver a esposa desesperada aos pés do marido traidor. Um personagem cerebral guia-me nesse enredo. A raiva guia-me. Sou assediada por uma infinidade de sentimentos oscilantes, embora a raiva seja, nesse momento, uma emoção clara e fixa. Sou a raiva. Ela me contém e acalma. Meu ópio e minha arma.

Meu marido tira o paletó e, quando afrouxa a gravata, seus pelos ruivos roçam como lixa os meus olhos. Seus pelos, avançando o pescoço, provocam em mim desejo e despeito. O despeito de quem nunca mais irá tocá-los. Desvio o olhar, sentindo-me menor pelo desejo. Estou vulnerável. A raiva perde força, como um estio repentino de temporal. Ele abre a caixa saboreando o desfazer de cada laço, com uma delicadeza feminina. Recomponho-me, aos poucos. Tomo mais uns goles de mágoa e novamente estou pronta para odiá-lo.

Vejo que seu olhar localiza o presente, mas não o identifica. Fica alguns segundos vendo sua própria letra dentro da caixa, absorto. Estou sentada na cadeira à sua frente e pergunto-lhe se gostou da surpresa. Minha voz soa firme como um soco. Minhas pernas tremem sob a mesa. A carta, ou o que resgatei da carta, está emendada com fita durex.

Pergunta-me como fiz aquilo e respondo-lhe que não fiz nada, que o sujeito da ação foi ele mesmo. Levanta-se e começa a bradar justificativas que não ouço. Gritamos juntos, num coro desarmônico e febril. Ficamos assim por muito tempo, até que ele segura meus braços e me implora para ser ouvido! Todo o meu esforço para filtrar a dor, para ao menos não demonstrar que estou derrubada, é inútil. Estou derrubada, como a taça de vinho, que, num gesto cego e brusco, tombei sobre o linho da mesa.

Aceito ficar em silêncio e tentar ouvi-lo. É quase impossível conter o transbordar de insultos e acusações que meu desespero produz, numa frequência tão rápida, que nem meu próprio entendimento alcança. Aceito ficar em silêncio porque preciso que ele me convença de que todas as evidências são equivocadas. Preciso que ele me prove que estou louca ou que Papai Noel existe. É urgente que ele me salve de mim, porque insultá-lo já não me basta, já não me alivia a dor. Ao contrário, cada vez que ele se debate sob o chicote das minhas palavras, apanhamos os dois.

Meu marido cria sua ficção: a amante não era amante. O que poderia ter sido um caso não passou de desejo não realizado. Eles apenas saíam para almoçar e conversavam a respeito desse desejo. Pego a carta, que nessa altura já está sobre o sofá, e pergunto-lhe, em tom contido, o que significam aquelas confissões? O que significa, por exemplo, “... muito talento para a vida dupla?”. Antes que me responda, digo-lhe que está claro na carta o rompimento de um romance.  Que ele, naquele momento, seja menos covarde do que tem sido! Seus olhos estão vermelhos, as pálpebras inchadas como quem chorou muito; mas não verteu uma lágrima na minha presença. E não saiu um segundo da sala.

Caminha até o bar e serve-se do mesmo vinho que bebo. Ficamos, milagrosamente, em silêncio. Sento-me no sofá, e o movimento de afundar meu corpo no estofado proporciona-me a primeira sensação de alívio daquelas quase oito horas de martírio. Respiro profundamente, e a quantidade de ar inspirado quase me abastece.

Meu marido senta-se ao meu lado e procura meu olhar, que atravessa a cristaleira. Volta a afirmar que não houve nada além de sedução mútua, contida a tempo. Pergunto-lhe por que precisaria pôr fim a uma coisa que nunca existiu, e peço-lhe que saia de nossa casa por uns tempos. Diz que estou sendo cruel e repete inúmeras vezes seu amor por mim. Indaga-me, quase em tom afirmativo, se nunca tive fantasias. Garante, por fim, que isso poderia acontecer comigo, que qualquer um pode iludir-se de que está apaixonado. Sinto certo alívio com essa possibilidade e agarro-me a ela com alento. Admito, apenas para mim mesma, que já tive insistentes fantasias de traição, num certo momento. Pela primeira vez, lamento profundamente não tê-las realizado.

Olho para ele, devagar. Meus olhos tocam os seus com dificuldade, com o cuidado de quem sai da claridade e entra no breu de um cinema. Entro no breu dos seus olhos azuis. Seus olhos azuis são negros. Quero mudar a realidade, mas a realidade é incontrolável.

 

Cena 4 - A fuga

 

Faz seis dias que não nos vemos e dois que ele não me telefona. Talvez esteja cansado da arrogância de minha mágoa. É impossível não o atender ao telefone. Também é impossível escutar suas mentiras. Cada palavra sua reacende meu ressentimento. E meu ressentimento me faz acionar um arsenal de insultos válidos, outros vãos. Visito nosso passado e reativo todas as mais insignificantes quinquilharias de desgosto. Especializo-me em sofrer e fazer sofrer. Especializo-me em acusar e ter razão. Ter razão infla-me e deixa-me menos humana. Ter razão fortalece minha couraça e preserva a distância de que preciso para manter-me de pé.

 Esses telefonemas duram pouco. Na maioria das vezes, deixo sua fala ao meio e desligo. Quando toca a campainha, não o atendo. Troquei a fechadura. Tranco-me inteira. Penso em ceder, em perdoar, mas perdoar não é uma decisão racional, não depende de minha boa-vontade. Ou depende? Estou confusa, mas sei que seria insuportável deitar-me com um homem que deseja outra, que chama silenciosamente por outra. Eu também poderia desejar outro. Outro que me quisesse, que pensasse só em mim. Poderia tentar esquecê-lo. Lembro-me do homem por quem me senti seduzida. Ele também me queria. Disse isso a minha amiga, no curso de informática. Ela sabe seu telefone. Ligo. Ela diz que estou sendo infantil, mas fornece a informação de que preciso.

Estou diante do homem que será, em breve, meu amante. Ele bebe água mineral e fuma. Imagina que o desejo, e tem um olhar direto, quase vaidoso. Um homem seco. Antes não parecia ser um homem seco. Antes, sorria, ao me encontrar no curso. Digo para mim mesma que é apenas o primeiro encontro, que depois ele se tornará um amante tão ardoroso, que nunca mais pensarei em meu marido. Um homem que não me trairá. Viveremos um amor legítimo, que não se extinguirá na merda de um cesto de lixo.

Mas é quase um sacrifício estar ali. De perto, ele não é atraente. Fala pouco, e a imagem eloquente de meu marido está entre nós, contaminando nosso parco diálogo, com suas inserções inteligentes. Penso que não posso ser tão exigente, afinal, quero ou não parar de sofrer? Ele me beija e seu beijo tem sabor de saliva. Há dez anos não sou íntima de outro homem, e tento me convencer de que a estranheza é natural. Enquanto ele me beija novamente, sua mão desliza pelo meu seio, de uma forma tão inesperada e suave, que todo o meu corpo reage. Acorda. Compreendo, enfim, que outra pessoa pode confundir minha cabeça. Compreendo que também sou vulnerável, e não quero mais brincar disso. Levanto-me no mesmo momento em que o garçom traz nosso jantar. Ele me olha, sem surpresa. Digo-lhe qualquer frase desconexa e saio do restaurante como uma fugitiva.


Cena 5 - A cilada

 

Entro em minha casa com uma saudade imensa, pura e viva do homem que amo. Ele continua no apart hotel de Copacabana, atendendo ao meu pedido de afastamento. Temo que tenha desistido de mim e que volte a procurar a amante.

A amante toca a campainha. Vejo a mulher pelo olho mágico e entendo que é ela. Intuição? Alguma coisa de meu marido está impregnada em seu semblante. Mas qualquer mulher estranha tornar-se-ia, aos meus olhos, a amante de meu marido!

Apresenta-se como uma colega de trabalho dele, e minha suspeita se confirma. Não é bonita, mas isso não importa; ele a deseja. Desejou, segundo ela. Está ali a seu pedido, para confirmar que não houve nada. Somente porque ele não quis, faz questão de ressaltar. Minhas mãos estão trêmulas, mas tento pegar com segurança o envelope que me é entregue. Uma carta. O original da carta que ele lhe endereçou. A carta-rompimento, sem as nódoas do rascunho rasgado no lixo:

Dora,

Decidi lhe escrever, porque é mais fácil assim. Você me perguntou por que pedi para mudar de departamento, e eu acabei evitando responder pessoalmente.

Preciso pôr um fim nessa convivência meio dúbia que inventamos pra nós. Minha mudança de departamento foi, realmente, um primeiro passo importante, pois, naquela imensidão de empresa, não vamos nos esbarrar com tanta frequência. E, com a diferença de horários, não almoçaremos mais juntos, o que, para mim, é um grande auxílio, pois sua presença é muito envolvente.

Dora, contrariando o que grande parte das mulheres pensa dos homens, não tenho muito talento para vida dupla. Esse nosso processo de sedução está ficando muito perigoso para mim. Prefiro que ele pare nas palavras. Estou bastante atraído por você, mas, ao contrário do que imaginei e disse, não é paixão o que sinto. Desculpe. Um casamento longo como o meu passa por fases de menos envolvimento, onde as pessoas ficam mais práticas ou menos sensíveis, mas isso não significa que não ame minha mulher.

Dora, amo minha mulher, embora saiba que vou sentir saudades do que, afinal, não houve entre nós. Não sei se você me entende, mas acho que vou sentir saudades da fantasia não realizada. Porque, por mais que a gente seja feliz no casamento, as fantasias com outras pessoas são inevitáveis. Você está sendo uma fantasia perigosa demais, pelo nível de atração que me provoca. Espero que me entenda. Espero que me perdoe a covardia. Na verdade, espero que admire minha coragem, porque é preciso coragem para não concretizar um envolvimento com uma mulher tão bonita como você.

O telefone toca. Na secretária eletrônica, a voz de meu amante. Mas não lhe dei meu número! A mulher me olha. Levanto, num salto, para interromper a mensagem, que escorre como água: Apesar de tudo, foi muito bom. Já tem saudades, quer mais uns beijos e precisa me ver.

 

* O conto Dora integra o livro Sutilezas do Grito (contos), Rocco, 1997. Recebeu os seguintes prêmios:

VI Concurso Nacional de Contos Cidade de Uberaba, da Fundação Cultural de Uberaba/ Academia de Letras do Triângulo Mineiro, Uberaba/ MG – 2º. Lugar, 2000.

Concurso de Contos Guimarães Rosa (Prêmio Casa da América Latina), Rádio França Internacional, Paris/ França, 2003.

Adaptado para o cinema, por Luiz Rangel, participou do Festival Internacional de Gramado, finalizando a Mostra de curtas gaúchos, como média-metragem convidado, em 2009.


Mira Schendel



Carmen Moreno é poeta, contista e romancista premiada, membro do PEN Clube do Brasil. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNI-RIO). Publicou os seguintes livros: Diário de Luas (romance), Rocco; Sutilezas do Grito (contos), Rocco; O Primeiro Crime (romance policial), Coleção Elas São de Morte, Denise Assis (Org.). Rocco; O Estranho (contos), FiveStar. POESIA: De Cama e Cortes, UERJ; Loja de Amores Usados, Multifoco; Para Fabricar Asas, Ibis Libris, e Sobre o Amor e Outras Traições, “no prelo”, Patuá. Integra mais de 30 COLETÂNEAS, entre as quais Mais 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (contos), Luiz Ruffato (Org.). Record. Seu romance Diário de Luas foi tema de dissertação de Mestrado pela FURG/ RS. Entre as premiações, o Prêmio Casa da América Latina (Concurso de Contos Guimarães Rosa), Rádio França Internacional, Paris. 



Comentários

  1. Um dos grandes contos da literatura brasileira contemporânea. Estupendo. Ritmo interno, força estética, literária e poética. Parabéns!

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  2. Um dos melhores contos que já li, e olha que sou leitora apaixonada. Carmen, poetisa, já é incrivelmente poetíssima, agora, esse seu contar me deixa cicatrizes. Não esquecerei.

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