Para não dizer que não falei dos cravos | Vai passar o estandarte de "Bendita sois vós" de Clark Mangabeira

Coluna 23

 Vai passar o estandarte de 

Bendita sois vós de Clark Mangabeira*

- Por Divanize Carbonieri 


Em Bendita sois vós, Clark Mangabeira examina o cotidiano por meio de uma série de lentes. Instantes aparentemente corriqueiros, como um mergulho no mar ou uma aula de Direito Civil na universidade, são aumentados para mostrar como a ficção e a boa literatura também podem ser encontradas neles. Outros momentos surgem meio que borrados, e aquilo que a princípio parecia ser uma coisa logo se revela outra. Não se trata simplesmente de uma “reviravolta ao final”, expediente que o narrador do conto que faz parte do epílogo, “Ave Maria”, diz apreciar, mas que foi criticada como um clichê por sua revisora. Por influência ou não dessas críticas (mais provável que não), o fato é que o final com reviravolta, presente em grande parte do livro, se parece mais com um ajuste de foco, com o avançar e afastar do zoom, com tornar mais ou menos nítida toda uma situação.

Esse procedimento estético aparece ainda enquanto metáfora em “Manhã de março”, em que um homem enxerga ao longe a amada recém-perdida apenas como um borrão, uma imagem disforme. O caminho de aproximação que iria trazer nitidez a essa miragem é, no entanto, interrompido por um trágico acidente. Mas talvez nesse brusco corte esteja a chave para o reencontro, afinal, “Felicidade o nome? Só ele sabe. Ou saberia”. Então, às vezes a mudança de perspectiva é tão intensa e abrupta que aquilo que se deu a ver até ali de forma embaçada ou míope segue apenas como uma presença sugerida, a cujos contornos se tenta adivinhar sem que uma apreensão total seja jamais possível.

Em “A dança”, o embalo das ondas do mar do Leblon, “mais extasiante do que qualquer outro”, auxilia na criação do efeito de algo que ora emerge na narrativa, ora submerge. Esse movimento cambiante se relaciona com certo embaralhamento das identidades: quem narra é um homem ou uma mulher? Porém, tal parece ser mesmo a natureza dos gêneros, que amiúde são pensados como totalmente distintos, mas que frequentemente demonstram ser muito mais elásticos do que aquilo que cabe em simples binarismos. Quando a voz narrativa estabelece por fim uma definição a respeito de si mesma, afirmação e negação não espelham contrastes, mas traçam equivalências: “Naquele mar, percebo hoje que sempre fui a puta de um cliente. Nunca, jamais de fato, o neto do meu avô”.

O conto “Mangueira” também se completa com uma dissolução semelhante. Embora sejam evitados adjetivos que marquem o gênero de quem narra em primeira pessoa, cria-se um horizonte de expectativa em que um sujeito masculino parece deter a palavra: “Minha família sempre curtiu Carnaval, mas eu o descobri anos depois. Chamego para uma namorada. Ela me levou, sob coação de casal, à quadra de uma Escola que conhecia apenas pela televisão”. A armadilha para o estereótipo talvez esteja na palavra “casal”, identificada culturalmente quase sempre com o par homem/mulher. Mas bem se sabe que existem casais com outras conformações. E a cristalização se desfaz enquanto os corpos – e gêneros – se confundem na trama, como parceiros de uma dança tão dinâmica e sensual quanto o samba.

Mangabeira, exímio no esmaecimento de limites e diferenciações, escolhe um nome corriqueiro para suas/seus protagonistas: Maria. Sob o manto de Maria, pode esconder-se tanto a puta quanto a santa. Maria são todas as mulheres, mesmo aquelas que não se chamam assim. Como vimos, Maria às vezes é homem também. Maria está ainda em relação direta com o mar, elemento marcante em muitos dos contos aqui presentes. Escapa, assim, da estreita configuração religiosa, aproximando-se de Iemanjá e Oxum. Nesse sentido, a pista para a escolha, “Simples: o nome será Maria”, demonstra-se enganosa: não há nada de direto e elementar em tal nomeação.

Continuando com as denominações que não aparentam a complexidade que de fato possuem, o autor decide dividir seu livro em Prólogo, Ato I, Ato II e epílogo. São seções mais facilmente encontradas em peças teatrais e não em coletâneas de contos. O que haveria de encenação nesse conjunto de narrativas? Talvez o jogo de aparências, disfarces e fantasias que faz parte do teatro (e do Carnaval). Em Bendita sois vós, as personagens se parecem com atrizes que carregam indumentárias que as fazem se assemelhar ao que não são. Mas assim como um intérprete torna-se, pelo menos temporariamente, aquilo que interpreta, elas também adquirem novos contornos. E o caleidoscópio das identidades continua girando e produzindo variadas formas.

Além disso, ambos os Atos são designados como se fossem contrários: o primeiro, reunindo os contos nomináveis, e o segundo, os inomináveis. As Marias, identificáveis no Ato inicial (embora muitas vezes sob disfarces), tornam-se Ela, Ele, Elas no seguinte. O nome que não nomeia se alarga para incluir os pronomes que não determinam as pessoas sobre as quais se fala. Então, são opostos que, na verdade, se colocam numa relação de contiguidade ou justaposição. Ademais, nesse segundo segmento, a brevidade das narrativas surge ainda mais acentuada, assim como seu potencial de surpresa ou quebra do esperado:

 

Ela

 

Ao passar pela boca, a bala, da expectativa do doce, distanciou-se, assumindo um inesperado azedo para o paladar infantil da moça.

Mas cumpriu o estrago, estourando-lhe a nuca.

 

Simulando o efeito explosivo de um projétil, a narrativa toma de assalto a atenção de quem lê e a assombra com uma imagem imprevista. Narrar nada mais é do que mostrar a ruptura de uma determinada ordem e seus desdobramentos. Contar que alguém sente na boca o gosto doce de uma bala tal qual o desejável provavelmente não despertaria interesse suficiente. Mas romper com o previsível e implodir certezas é golpe de mestres na arte do conto. Nesse seu livro de estreia, Mangabeira mostra a que veio e revela, além do domínio do ofício, a ousadia que caracteriza o modo de agir de quem sente verdadeiro prazer naquilo que realiza. Nisso, ele se assemelha a um sambista experimentado, que, após anos de treinamento, faz com que os movimentos e passos aprendidos pareçam tão naturais quanto o simples caminhar. Sendo assim, senhoras e senhores, abram alas para Bendita sois vós passar e encantar!


* Texto originalmente publicado como prefácio ao livro.


https://www.travessa.com.br/bendita-sois-vos-1-ed-2021/artigo/354a7679-7452-48a5-b805-cce387413040



Clark Mangabeira é professor de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso e enredista de Escolas de Samba. Publicou nas revistas literárias Pixé, Matapacos, LiteraLivre, Desenredos, Revista Brasileira de Contos Flaubert, dentre outras. Participou das antologias @Normal - o mundo pós-pandemia segundo a literatura, TABU e Poetize 2021 - Seleção de Poesia Brasileira. É autor da coletânea de contos Bendita sois vós (Editora Viés, 2021).



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